Memórias da Ditadura

CNV e indígenas

A Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final aponta que a construção de estradas e hidrelétricas, o desmatamento para a pecuária, agricultura e mineração e a criação de polos de desenvolvimento, resultaram na expulsão de comunidades indígenas de suas terras e em milhares de mortes.

Os Povos Indígenas e a Comissão Nacional da Verdade

A inclusão dos povos indígenas nos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) teve um significado importante para a afirmação do processo de Justiça de Transição  em curso no Brasil, pois ampliou o foco dos atingidos, incluindo também aqueles que foram vítimas do modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado e proporcionou uma melhor compreensão das graves violações de direitos humanos que ocorreram no Brasil entre 1946-1988, ao mostrar que a violência não ficou restrita aos grupos políticos que fizeram oposição ao regime após o golpe de 1964, atingindo de forma brutal segmentos sociais que estavam no caminho do progresso.

 

Diferente do que ocorreu com outros segmentos da sociedade, em todo o período estudado pela CNV, os povos indígenas e seus membros sofreram com a violência do Estado, rompendo um silêncio sobre estas violências contra os povos indígenas, esquecidas, muitas vezes, nas políticas, lutas e abordagens da justiça de transição.

 

A CNV apontou em seu relatório final a falta de reconhecimento e demarcação dos territórios indígenas como raiz central das graves violações de direitos humanos apuradas, nas quais o Estado brasileiro, por ação e omissão, foi responsável pela morte de ao menos 8.350 indígenas em 10 etnias estudadas, das 305 que vivem no Brasil. Tendo isso em vista, a CNV apresentou 13 recomendações para que o Estado inicie o processo de reparação aos povos originários de nosso país pelas violências sofridas.

 

O Estado sempre desenvolveu planos para expandir as fronteiras internas, criando cidades, rodovias, ampliando os negócios, as áreas agricultáveis e a infraestrutura para o escoamento de matérias-primas e minerais. Essa expansão significou para muitos povos, miséria, perseguição, criminalização, prisão e tortura, chacinas, remoções forçadas, desestruturação cultural e comunitária, proibição de falar sua língua, assassinatos de caciques, lideranças indígenas e membros das comunidades que lutavam por seus territórios, direitos e cultura.

 

Na ditadura, onde a violência se acentuou com a Doutrina de Segurança NacionalA Doutrina de Segurança Nacional foi um decreto elaborado pela Escola Superior de Guerra que permitiu ao regime ditatorial perseguir e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, aqueles que eram considerados pela ditadura como ameaças à ordem estabelecida por questionarem e se oporem ao regime autoritário. A Doutrina surgiu na esteira da perseguição aos comunistas, no contexto da Guerra Fria, no entanto permitiu que não apenas comunistas e opositores fossem perseguidos, mas muitos outros que foram considerados “inimigos da nação” ou “ameaças a segurança do país”., a construção de estradas e hidrelétricas, os projetos de colonização de terras para a agricultura e pecuária, a mineração, resultaram em morte, expulsão e remoção forçada de comunidades indígenas inteiras de suas terras e no confinamento destes povos, muitos vivendo em meio a conflitos até hoje.

 

A Comissão Nacional da Verdade tirou o foco da violência contra os indígenas praticada pelos portugueses e o colocou sobre a ação recente do Estado brasileiro, onde as violências sofridas por estes povos indígenas nos anos 1960-70-80, têm reflexos diretos na violência vivida por eles em todo o período de nossa redemocratização. Isso desde a constituição de 1988 até 2016 – momento em que o país vive uma situação de extrema instabilidade política, jurídica e institucional acarretada pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

 

A negação da reparação aos povos indígenas

Depois de publicado o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, este caiu no esquecimento por parte dos poderes da República. O assunto desapareceu da imprensa depois do final de 2014 e a crise política gerada pela reeleição da presidenta Dilma Rousseff, já no início de 2015, sepultou os encaminhamentos e discussões sobre as 13 recomendações indígenas, e dos demais temas, apresentadas pela CNV.

Com o impeachment ocorrido em 2016 a desconstrução do processo de justiça de transição se intensificou no Brasil, onde o estado deixou de construir o “Nunca Mais” e partiu para uma repetição de praticas de violência de Estado apontadas pela CNV e a retomada de ações antidemocráticas – de custo social muito caro aos brasileiros e brasileiras.

 

Nenhuma das 13 recomendações indígenas foi acolhida pelo estado brasileiro. Mesmo antes do processo de impeachment de 2016, a inclusão de outros casos indígenas sofreu restrições por parte do Ministério da Justiça, que negou solicitação do Ministério Público Federal (MPF) para a inclusão do caso Krenak que solicita a reparação coletiva deste povo indígena pelos fatos ocorridos em Minas Gerais.

Desta forma o Ministério da Justiça negou aos demais povos atingidos o avanço do processo de justiça de transição, representado pela reparação aos 14 Aikewara-Suruí por violências sofridas durante o enfrentamento à guerrilha do Araguaia e do caso de Tiuré Potiguara, exilado no Canadá nos anos 1980, anistiados pela Comissão da Anistia em 2014.

Com a demissão e troca dos conselheiros da Comissão de Anistia, toda discussão da reparação indígena voltou ao ponto zero, uma vez que os comissionados que participaram da discussão toda ao longo do processo da CNV foram trocados, fechando mais ainda as portas para a reparação aos povos indígenas. A reparação às violências deste passado recente praticadas contra os povos indígenas vai muito além da reparação financeira.  Ela tem também caráter pedagógico junto à população apontando a necessidade da sociedade brasileira respeitar os direitos destes povos; caráter simbólico junto à população atingida, para reafirmação dos direitos junto às novas gerações; também caráter clínico terapêutico, na reparação psicológica dos indivíduos que foram vítimas de tais violências.

O Ministério Público Federal (MPF) é no momento o único ente do Estado, que tem atuado para garantir o direito à reparação de alguns povos. Junto ao MPF o povo Krenak reclama indenização por ter sido colocado em campo de concentração, tal qual o povo Aikewara-Suruí, quando da criação de cadeia indígena em suas terras nos anos 1970 e de ter perdido parte do seu território mediante remoção forçada. O povo Kayabi quer ser reparado pela remoção forçada a que foi submetido, que vitimou parte de seu povo durante a transferência de terras e na luta pela retomada de suas terras. O povo Pataxó Hã-Hã-Hãe tem direito ao ressarcimento pelo roubo da renda indígena proveniente de contratos de arrendamento em suas terras de Itajú da Colônia, realizados com quantia irrisória. Há procedimentos também no MPF do Amazonas para reparar o povo Waimiri-Atroari, que viveu um genocídio, entre 1975-1982, atingidos pela construção de estradas e uma hidrelétrica em seu território.

 

A negação da reparação aos povos indígenas por parte do Estado brasileiro se dá pelo engavetamento das recomendações da CNV, o sucateamento da FUNAI, a paralisação dos processos de demarcação de terras por parte do Executivo Federal, e pela retirada de direitos constitucionais indígenas – como a PEC 215 e outras leis  de caráter anti-indígena em tramitação no Congresso Nacional. Também tem sido ameaçada pelo STF por meio do conceito de marco temporal adotado.  O STF quer restringir mediante uma “data de validade” o direito originário dos povos indígenas, isso é feito determinando a data da promulgação da constituição como referência para determinar a posse da terra. Com isso o STF rasga a constituição e joga no lixo o direito originário das terras garantido na Constituição, promovendo o esquecimento da violência apurada pela CNV e os muitos crimes de tutela praticado pelo Estado, anistiando o roubo das terras indígenas no Brasil.

É preocupante a situação dos povos indígenas brasileiros e seus direitos.

As recomendações da CNV e a luta dos povos indígenas

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apresentou em seu relatório final – no capítulo 5 do volume 2, um conjunto de recomendações ao Estado brasileiro, apresentando caminhos para a superação de conflitos atuais e reparação das violências apuradas contra o indígena brasileiro entre 1946-1988.

 

O relatório aponta que a população indígena brasileira foi um dos segmentos mais atingidos por graves violações de direitos humanos no período pesquisado e reconhece a responsabilidade do estado brasileiro no esbulho (usurpação) de suas terras. O relatório também desvela a ligação desta violência passada com a violência sofrida pelos índios hoje, que seguem defendendo seus territórios, cobiçados por diversos setores econômicos. Também reconhece a luta pela reconquista das terras roubadas no passado.

 

“Por todos os fatos apurados e analisados neste texto, o Estado brasileiro, por meio da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum. Diante disso, são apresentadas algumas recomendações.” (Relatório da CNV – Volume 2 – Texto 5 – págs. 253.)

 

 

A não demarcação das terras indígenas é o foco central gerador das graves violências apuradas no relatório e as 13 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, apontam para três eixos de ação do Estado brasileiro.

 

Os três eixos justransicionais de ação do Estado Brasileiro

 

O primeiro eixo está voltado para o conceito da não-repetição e tem na demarcação das terras indígenas, na desintrusão das pessoas ou empresas que ocupam irregularmente a terra indígena e na recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas, a centralidade da ação do Estado para que se promova uma mudança de conduta para um desenvolvimento com respeito e para que nunca mais aconteça as graves violações apuradas. Diz a CNV em sua conclusão:

 

“Do ponto de vista dos governos militares e também de uma parcela do empresariado brasileiro, os índios estavam explicitamente excluídos tanto da condição de cidadãos brasileiros que deveriam ser levados em conta nos projetos governamentais, em sua diferença, quanto de eventuais benefícios que o “desenvolvimento do país” poderia trazer às suas populações. Eram correntes na imprensa as declarações explícitas dos agentes do Estado caracterizando os índios como obstáculos ao desenvolvimento do país. (…)

 

Em síntese, pode-se dizer que os diversos tipos de violações dos direitos humanos cometidos pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas no período aqui descrito se articularam em torno do objetivo central de forçar ou acelerar a “integração” dos povos indígenas e colonizar seus territórios sempre que isso foi considerado estratégico para a implementação do seu projeto político e econômico.

 

(…) Assim, se estabelece na prática uma política que, ao invés de proteger os “usos, costumes e tradições” indígenas, atua diretamente para alterá-los sempre que se julga que se apresentam como um “empecilho” ao projeto político do governo. É gestada uma política de exceção, a partir da qual o “modo de ser” de cada um dos povos indígenas permanece sempre sob suspeita e a proteção dos seus territórios, assegurada pela Constituição, torna-se arbitrariamente passível de relativização ao sabor de interesses políticos.” (Relatório da CNV – Volume 2 – Texto 5 – págs. 251-2.)

 

A CNV propõe também, para construir o “Nunca Mais” no Brasil e garantir a não-repetição das violências passadas, a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade “visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo”, uma vez que o apurado nos dois anos de trabalho, ficou muito distante da totalidade de denúncias de graves violações recebidas pelo grupo de trabalho da CNV e portanto há muito a ser investigado e revelado à sociedade. Infelizmente o Estado brasileiro ainda não tomou nenhuma atitude visando a continuidade dos trabalhos.

 

O segundo eixo está voltado à reparação individual e coletiva dos povos atingidos. Propõe o reconhecimento pelos demais mecanismos e instâncias da Justiça de Transição de que “a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política” gerando as violências praticadas contra o índio e também, que efetivem a reparação dos casos apontados no relatório final e os que surgirem nos trabalhos da nova comissão.

 

Recomenda, ainda, como medida de reparação, o fortalecimento de políticas públicas de atendimento à saúde indígena ligadas ao SUS, por constatar no período estudado, que a precarização do atendimento a saúde do índio e o descaso com o contato, eram parte da estratégia de violações de direitos que os vitimaram.

 

Aponta a necessidade de que sejam apresentadas proposições legislativas de caráter reparatório coletivo voltado aos povos indígenas e a criação de grupo de trabalho no Ministério da Justiça para viabilizar as reparações individuais daqueles que sofreram graves violações de direitos humanos nos presídios para indígenas criados pelo Estado, localizando e encaminhando os atingidos ou seus familiares à Comissão de Anistia, para formalização de processos de reparação.

 

O terceiro eixo, complementar aos anteriores, apresenta a necessidade de ações pedagógicas vinculadas à estrutura educacional do estado e à comunicação com a sociedade, tais como, a necessidade de um “pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas”, a promoção de campanhas de esclarecimento da sociedade sobre os direitos dos índios e as violências sofridas por eles no período apurado pela CNV. Para isso, sugeriu-se a incorporação do tema na grade curricular pública, com estímulo e fomento à pesquisa sobre a violência contra o indígena brasileiro e também a divulgação e acesso digital público aos documentos recolhidos pela CNV sob guarda do Arquivo Nacional. Tudo isto com o intuito de  favorecer a continuidade da apuração destas violências e a conscientização da sociedade sobre a necessidade de reparar os povos indígenas, devolver suas terras e respeitar sua cultura.

 

O relatório da Comissão Nacional da Verdade e as recomendações apresentadas pela CNV trazem racionalidade ao debate sobre a legitimidade e urgência de se efetivar as demarcações das terras indígenas. Apontam o caminho justo a ser trilhado no país, demarcando-as e apresentam ao Executivo, Legislativo e Judiciário a necessidade de que a demarcação também seja realizada como um ato de concretização da justiça transicional, devida aos povos indígenas pelos governantes, legisladores e membros do judiciário no presente.

 

A necessidade de se continuar a investigação sobre as violências contra indígenas

A CNV aponta ao Estado brasileiro medidas concretas de não-repetição, reparação coletiva, individual e educação social sobre o direito indígena à terra e a seus costumes. Através da recomendação de reconhecimento efetivo de seus territórios, do respeito à sua cultura e organização social e da necessidade de reparar os atingidos, a CNV cobra um tributo a todos os indígenas mortos pelo Estado, vítimas, por ação ou omissão, de um desenvolvimento sem respeito, frisando que o número de índios e índias mortos no período “deve ser exponencialmente maior” ao apresentado. Diz a CNV:

 

“Como resultados dessas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos no período de investigação da CNV, em decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão. Essa cifra inclui apenas aqueles casos aqui estudados em relação aos quais foi possível desenhar uma estimativa. O número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas.” Relatório da CNV – Volume 2 – Texto 5 – págs. 205.)

 

 

Ao afirmar que “são os planos governamentais que sistematicamente desencadeiam esbulho das terras indígenas”, a Comissão Nacional da Verdade chamou a atenção da sociedade para inúmeras iniciativas promovidas hoje pelo Executivo, Legislativo e Judiciário que estão por repetir este passado violento, visando promover mineração em terras indígenas, construção de projetos de hidrelétricas, barragens e estradas, linhas de transmissão de energia elétrica, bem como o esquecimento e consolidação dos esbulhos de terras anteriores a 1988, mediante o desmonte da legislação de proteção aos direitos indígenas e o enfraquecimento das prerrogativas constitucionais da FUNAI e seu orçamento.

 

Ao tirar o foco da violência praticada pelos portugueses durante a Colonização e o Império, trazendo o olhar da sociedade para o passado republicano recente, a Comissão Nacional da Verdade abriu as portas da justiça de transição aos povos indígenas do Brasil, mas sua efetivação é uma difícil tarefa, dado o fortalecimento de interesses contrários aos direitos indígenas nos três poderes da república e que vão na contramão do que disse a CNV em seu relatório.

 

“É notório ainda, e reconhecido no texto constitucional atual, que o “modo de ser” de cada povo indígena depende da garantia de suas terras, de forma a promover as condições para a proteção e o desenvolvimento de seus “usos, costumes e tradições”. Desse modo, enquanto não houver a reparação por todas as terras indígenas esbulhadas durante o período de estudo da CNV, não se pode considerar que se tenha completado a transição de um regime integracionista e persecutório para com os povos originários desta nação, para um regime plenamente democrático e pluriétnico.” Relatório da CNV – Volume 2 – Texto 5 – págs. 252.)

 

 

O Brasil possui 305 etnias distribuídas em todo o território nacional, o conflito por demarcações de terras atinge quase todos os estados da federação. A CNV consolidou informações sobre as graves violações de somente 10 destas etnias, levantando nesta pequena parcela a morte de “cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14 Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354 Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé”. O Estado brasileiro não pode negar aos cidadãos e cidadãs, índios e não-índios, a continuidade deste levantamento – por isso uma Comissão Nacional Indígena da Verdade se faz urgente e necessária.

 

Os Guarani-Kaiowá, Terena, Kadiwéu e demais povos do Mato Grosso do Sul, cujo esbulho aparece em documentos do Relatório Figueiredo e que apresentaram seus depoimentos à comissionada Maria Rita Khel em audiências públicas e os demais povos visitados pela CNV têm o direito à implementação destas recomendações, principalmente pela violência que vivem ainda hoje neste estado.

 

O assassinato de Marçal Tupã-Í, os Guarani atingidos pela construção de Itaipú, os Tenharin e os Waimiri-Atroari atingidos no Amazonas, Angelo Kretã e os Kaingang,  os Tupinikin no Espírito Santo que foram declarados extintos até meados dos anos 1980, beneficiando a instalação de empresa ligada à produção de celulose em suas terras e tantos outros povos de Pernambuco, Goiás, Pará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Santa Catarina, Rondônia, Acre, São Paulo e Minas Gerais, por exemplo, que também foram atingidos pelas políticas de Estado entre 1946-1988, necessitam e devem ser reparados conforme as recomendações e seus casos esclarecidos na comissão de continuidade proposta pela CNV.

Romper com o silêncio sobre as recomendações

Romper o silêncio que paira sobre as recomendações da Comissão Nacional da Verdade frente às graves violações apuradas contra os índios entre 1946-1988 é uma necessidade que se coloca hoje para fortalecer a cidadania.

O governo federal nos últimos anos combinou as ações de omissão e precarização do ente responsável por gerir a política indigenista, tal qual apontada pela CNV para o período do Serviço de Proteção ao Índio e as ações de violência direta contra estes povos, com assassinatos de indígenas nas ações de reintegração de posse realizadas pela Polícia Federal, Militar e Força Nacional, militarização de canteiros de obras, prisões ilegais de lideranças e ações violentas e de cunho psicológico aplicadas contra o povo Tupinambá na ação de Garantia da Lei e da Ordem iniciada em 2014 no sul da Bahia. É preciso frisar que em escala diferente, porém não menos nociva à integridade da vida do indígena brasileiro, deste modo, a história continua a se repetir.

 

O silêncio da imprensa sobre as recomendações indígenas reflete o alinhamento destes órgãos de comunicação com os setores do Estado, agronegócio, mineradoras e indústrias que se beneficiaram e se beneficiam do desrespeito aos direitos territoriais apontados pela CNV, mantendo uma política de desenvolvimento sem respeito.

 

Ao descumprir a Constituição, esquecendo mais de 30 processos nas gavetas do Executivo e protelando indefinidamente as demarcações de terras indígenas, o Ministério da Justiça se torna cúmplice destas violências, repete as violações do passado e mostra que ainda não tomou conhecimento do trabalho da Comissão Nacional da Verdade referente aos povos indígenas.

 

O Poder Executivo Federal, através da Casa Civil e Secretaria Geral da Presidência, deveria encaminhar a cada parlamentar, cópia do capítulo indígena produzido pela CNV com destaque às suas recomendações, expondo a posição do Estado frente a elas, para sensibilizar deputados e senadores do quão equivocado são alguns projetos que tramitam no Congresso Nacional, quando vistos na perspectiva da justiça de transição, pois retiram direitos indígenas em vez de repará-los.

 

O mesmo deve ser feito junto aos Ministros do STF, para que nunca mais aconteça a oficialização do roubo de terras indígenas, seja pela criação do marco temporal, que nega o direito ao apurado pela Comissão Nacional da Verdade; ou pelo longo prazo de tramitação dos processos na justiça. Foi um exemplo disso o caso do esbulho de terras no Mato Grosso do Sul que depois de 55 anos tramitando, foi arquivado pelo Ministro Teori Zavascki por mais nada poder ser feito depois de tanto tempo, sem qualquer indicativo de reparação aos povos indígenas atingidos pelo esbulho.

 

Ao Executivo, Legislativo e Judiciário cabe encaminhar as recomendações indígenas da Comissão Nacional da Verdade, reparar os povos indígenas, promover a demarcação de suas terras e o respeito a seus direitos junto a toda à sociedade.

Recomendações da Comissão Nacional da Verdade sobre os povos indígenas

1.        Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando “a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos”.

2.        Reconhecimento, pelos demais mecanismos e instâncias de justiça transicional do Estado brasileiro, de que a perseguição aos povos indígenas visando a colonização de suas terras durante o período investigado constituiu-se como crime de motivação política, por incidir sobre o próprio modo de ser indígena.

3.        Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo.

4.        Promoção de campanhas nacionais de informação à população sobre a importância do respeito aos direitos dos povos indígenas garantidos pela Constituição e sobre as graves violações de direitos ocorridas no período de investigação da CNV, considerando que a desinformação da população brasileira facilita a perpetuação das violações descritas no presente relatório.

5.        Inclusão da temática das “graves violações de direitos humanos ocorridas contra os povos indígenas entre 1946-1988” no currículo oficial da rede de ensino, conforme o que determina a Lei no 11.645/2008.

6.        Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc.

7.        Reunião e sistematização, no Arquivo Nacional, de toda a documentação pertinente à apuração das graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas no período investigado pela CNV, visando ampla divulgação ao público.

8.        Reconhecimento pela Comissão de Anistia, enquanto “atos de exceção” e/ou enquanto “punição por transferência de localidade”, motivados por fins exclusivamente políticos, nos termos do artigo 2o, itens 1 e 2, da Lei no 10.559/2002, da perseguição a grupos indígenas para colonização de seus territórios durante o período de abrangência da referida lei, visando abrir espaço para a apuração detalhada de cada um dos casos no âmbito da Comissão, a exemplo do julgamento que anistiou 14 Aikewara-Suruí.

9.        Criação de grupo de trabalho no âmbito do Ministério da Justiça para organizar a instrução de processos de anistia e reparação aos indígenas atingidos por atos de exceção, com especial atenção para os casos do Reformatório Krenak e da Guarda Rural Indígena, bem como aos demais casos citados neste relatório.

10.     Proposição de medidas legislativas para alteração da Lei no 10.559/2002, de modo a contemplar formas de anistia e reparação coletiva aos povos indígenas.

11.     Fortalecimento das políticas públicas de atenção à saúde dos povos indígenas, no âmbito do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do Sistema Único de Saúde (Sasi-SUS), enquanto um mecanismo de reparação coletiva.

12.     Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988.

13.     Recuperação ambiental das terras indígenas esbulhadas e degradadas como forma de reparação coletiva pelas graves violações decorrentes da não observação dos direitos indígenas na implementação de projetos de colonização e grandes empreendimentos realizados entre 1946 e 1988.

 

As resistências indígenas e as ações do Ministério Público

Após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o país passa por uma situação de instabilidade institucional e ataques sucessivos e ininterruptos aos direitos das populações mais vulneráveis e que têm sido historicamente maltratadas, escravizadas, espoliadas e assassinadas. Setores conservadores têm avançando sobre os poucos direitos já conquistados pelos povos indígenas e têm incitado, quando não praticado diretamente, a violência contra este segmento. Mesmo frente a todas as atrocidades, os povos indígenas têm mostrado uma incrível capacidade de resistência e organização com suas ocupações e ações, mostrando que não irão ceder nas lutas por seus direitos.

Os 33 tipos de proposições parlamentares anti-indígenas

O governo Temer, logo ao assumir, anunciou a revisão de homologações e demarcações de terras conquistadas pelos indígenas, contribuindo para o avanço do retrocesso aos direitos dos povos indígenas já intensificado após as eleições de 2014, quando houve um crescimento considerável na quantidade de congressistas eleitos ligados aos militares, ruralistas e extremistas religiosos. Um levantamento realizado pelo Conselho Indigenistas Missionário (Cimi) no segundo semestre de 2017 apontou a existência de 33 tipos de proposições parlamentares anti-indígenas. Entre elas, 17 propõem alterações nas regras e processos de demarcações de terras, 8 anulam portarias que declararam terras como indígenas, 6 propostas buscam transferir ao Congresso a atribuição e competência de aprovar os laudos e de demarcar as terras; ainda há outras três, uma que quer autorizar o arrendamento em terras indígenas, outra visa impedir que desapropriações ocorram para demarcações dessas terras, e ainda uma última que visa estabelecer indenização para invasores que ocuparam terras indígenas após 2013. Todas estas proposições estão apresentadas na PEC 215/2000, que segundo estudo e análise do Instituto Socioambiental (ISA), propõe as seguintes modificações nos direitos conquistados por indígenas com a Constituição de 1988:

  1. Alteração das terras indígenas já reconhecidas e das demarcações já realizadas; além da transferência do Executivo para o Legislativo o poder de decisão final sobre as demarcações;
  2. Abertura das terras indígenas reconhecidas para empreendimentos econômicos como exploração mineral, construção de hidrelétricas, oleodutos, gasodutos, portos, aeroportos, linhas de transmissão de energia e obras de infraestrutura.  Além disso, prevê os arrendamentos dessas terras, a locação de assentamentos rurais não indígenas e a disponibilização para utilização agropecuária;
  3. Proibição de ampliação de terras indígenas já demarcadas;
  4. Inserir a denominada “tese do marco temporalA tese do marco temporal restringe o direito às demarcações de terras indígenas dado que exige a comprovação de que comunidades quilombolas e indígenas estavam ocupando as terras reivindicadas na data da promulgação da Constituição de 1988. O problema é que esta tese desconsidera completamente a expulsão e outras formas de deslocamentos forçados que foram impingidas a estes povos e que impossibilitaram, em muitos casos, que eles estivessem ocupando suas terras em 1988. ”  no texto da Constituição Federal;
  5. Aplicar retrospectivamente essas modificações, propostas pela PEC 215/2000, às terras indígenas já demarcadas e homologadas que estejam sendo questionadas no Poder Judiciário.

Além destas propostas, que anulam praticamente todos os direitos indígenas e  ameaçam todas as garantias das  terras já conquistadas, o governo atual tem produzido uma sistemática desestruturação da Funai. O orçamento da Funai – que já era muito pequeno – foi reduzido em 50%. Além disso, o governo cedeu à pressão do PSC (Partido Social Cristão aceitando a indicação do general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas como novo presidente da Funai. Depois de todas as violências praticadas pelo exército brasileiro contra indígenas durante e depois da ditadura, existe uma incontornável dificuldade para a construção da confiança dos povos indígenas na Funai – órgão criado pela ditadura em 1967 para substituir a SPI (Serviço de Proteção aos Índios) -, a escolha de um militar para presidência da Funai mostra bem como esse governo não apenas não protege efetivamente e simbolicamente os direitos dos povos indígenas.

Em maio, os ruralistas divulgaram o relatório da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O documento que propunha inicialmente a extinção do órgão, também pede o indiciamento de 67 pessoas, entre elas lideranças comunitárias, antropólogos e servidores públicos. Há uma explícita perseguição dos ruralistas contra os trabalhadores que lutam pelos direitos dos povos indígenas e que atuaram nos laudos que permitiram as demarcações de terra que estão sendo contestadas. O ano de 2017 foi um verdadeiro palco de ataques aos direitos indígenas e e violência. Em 1o de maio – Dia do Trabalhador – índios Gamela foram cercados por capangas de fazendeiros em Viana, no Maranhão. O ataque deixou 13 feridos gravemente, sendo que dois deles tiveram suas mãos decepadas, um os joelhos cortados, além de outros com graves ferimentos de balas. O genocídio de indígenas segue ocorrendo impunemente no Brasil.

A revisão das demarcações e as resistências indígenas

Em agosto de 2017, o Ministro da Justiça, Torquato Jardim, por meio da portaria 683/17 anulou a portaria 581/15 que reconhece uma área de aproximadamente 532 hectares como o território Jaraguá dos índios Guarani, em São Paulo. Com essa anulação os 700 guaranis que moram no território Jaraguá ficariam confinados ao 1,7 hectare de terra reconhecida em 1987. Segundo nota do Conselho Missionário Indigenistas (Cimi), a justificativa dada pelo governo Temer para tal anulação é a de que uma ampliação da demarcação de 1987 só poderia ter sido realizada pelo governo no prazo posterior. De acordo com a nota do Conselho, isso significa que os guaranis estão sendo punidos pela ineficiência e descaso do governo brasileiro com os direitos indígenas – dado que a demora pelo reconhecimento do devido território Jaraguá não é responsabilidade dos guaranis, mas do próprio Estado brasileiro.

Outra justificativa dada pelo ministro da Justiça é a de que a área de 532 hectares se sobrepõe à área de preservação ambiental do Parque Estadual do Jaraguá. No entanto, os grupos indígenas e as instituições indigenistas já estavam buscando estabelecer uma gestão compartilhada de preservação do Parque com o governo do Estado de São Paulo. Em 2016, a gestão estadual aprovou o projeto de lei 249/2013 que outorgava à iniciativa privada a administração dos parques estaduais sem consultar as comunidades tradicionais que seriam afetadas. É de conhecimento público que os guaranis são desde muito tempo protetores e defensores do território Jaraguá.

Frente a todos esses ataques aos direitos dos povos indígenas, estes têm mostrado uma capacidade incrível de resistência e luta. Logo após a portaria do ministério da Justiça, os guaranis ocuparam a sede do Pico do Jaraguá, bloqueando a entrada e ameaçando cortar os sinais de antenas de rádio e TV, que se localizam no Jaraguá, caso não fossem ouvidos. Também ocuparam a entrada do escritório da Presidência da República, na Avenida Paulista, em São Paulo, conseguindo uma audiência com o ministro Torquato Jardim.

Além destas ocupações, povos indígenas de todo o Brasil têm ocupado sedes da Funai em vários Estados. Eles resistem lutando contra a PEC 215 e contra a CPI da Funai/Incra e reivindicam que o STF contrarie a tese do marco temporal. As lideranças indígenas têm se organizado e estão indo também a várias organizações internacionais denunciar os ataques que os povos indígenas tem sofrido. O avanço conservador contra os direitos indígenas, que já era forte nos governos da presidenta Dilma – como mostrou o emblemático caso da usina de Belo Monte -, está cada vez mais alarmante, mas a resistência indígena também está cada vez mais forte. Já não será possível ignorar suas vozes!

 As recomendações da CNV e as ações do MPF

Fatos e dados demonstram que o Estado brasileiro não tem atuado na garantia, promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas. Pelo contrário, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário têm promovido o interesse de grupos como os ruralistas no ataque desenfreado contra este segmento. Não apenas as recomendações indígenas da Comissão Nacional da Verdade têm sido ignoradas como o Estado tem atuado na contramão das mesmas.

No entanto, o Ministério Público Federal (MPF) – que tem como atribuição constitucional a defesa dos povos indígenas – tem realizado ações que visam reparar e indenizar os povos indígenas pelas graves violações de direitos humanos que sofreram no passado e das quais seguem sendo vítimas no presente. O “Grupo de Trabalho – Povos Indígenas e Regime Militar” do MPF tem se debruçado, mesmo antes da CNV, sobre essas violações e realizado detalhada investigação sobre os fatos ocorridos na ditadura militar.

Além das ações civis públicas relacionadas às violações ocorridas contra os povos Tenharim e Jiahui durante a construção da rodovia Transamazônica, contra os Krenak e Maxacali, e contra os Xavantes durante a ditadura, o MPF moveu uma ação civil pública que dá sequência aos trabalhos da CNV no caso dos Waimiri-Atroari. A CNV já havia estimado que aproximadamente 2.650 Waimiri-Atroari haviam morrido, entre 1968-1977, por conta da construção da rodovia BR-174. Um verdadeiro genocídio! O Estado brasileiro sistematicamente invadiu as terras do Waimiri-Atroari, e os atacou com bombas, tiros e tortura. Por meio de Ações Civis Públicas (CVP), o MPF pede que o Estado indenize os Waimiri-Atroari e realize um pedido público de desculpas reconhecendo as violações de direitos fundamentais que foram praticadas. O MPF também trabalha com as Ações Civis Públicas (CVP) para tentar garantir a não repetição das violações contra povos indígenas que ocorreram no passado e que seguem ocorrendo no presente.

 

Para saber mais:

Site do Conselho Indigenista Missionário 
Site do Armazém Memória
Site do Centro de Trabalho Indigenista
Site do Instituto Socioambiental

Para saber mais:

  • Para análises, comentários, textos e mais materiais ver: http://armazemmemoria.com.br/centros-indigena/