Memórias da Ditadura

Desmilitarização e reforma das polícias

Ao combater a violência com violência, o Estado brasileiro tem contribuído para tornar o Brasil um país ainda mais violento. Hoje, pelo menos nove pessoas são mortas diariamente em decorrência da ação policial. Somente no ano de 2015, foram mortas 3.320 pessoas vítimas de intervenções policiais (segundo dados do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública).

A violência policial hoje e no passado

O aumento dos homicídios, praticados por agentes estatais sob a justificativa de “controle do crime”, têm provocado debates em diferentes fóruns sociais que apontam para  a necessidade de se promoverem mudanças nos rumos da segurança pública. Eles indicam a urgência em se construir um aparato policial “mais democrático”, que possa garantir, de fato, a a segurança da população e que, ao mesmo tempo,não cometa violências e arbitrariedades. O que se exige é o respeito à dignidade e o direito à vida dos cidadãos que sofrem as investidas policiais.

Muitas pesquisas e estudos sobre o tema, mostram que é urgente repensar o modelo de policiamento e as instituições policiais brasileiras. Concluem, por exemplo, que é preciso mudar a formação e o treinamento policial, desmilitarizar as Polícias Militares, ampliar a capacidade de investigação das Polícias Civis, qualificar o atendimento dado aos cidadãos nas Delegacias de Polícia, entre outras medidas. O seguinte dado corrobora essa percepção: 70% das pessoas entrevistadas para o 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança PúblicaO estudo ouviu 3.625 brasileiros com mais de 16 anos em 217 municípios de todo país. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Para mais informações ver: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//anuario-2016-03nov-final.pdf , têm convicção de que as polícias exageram no uso da violência e 59% têm medo de ser vítima da violência da Polícia Militar (PM). Outras 53% têm medo de ser vítimas da violência por parte da Polícia Civil. Isto significa que a mesma sociedade que reconhece a importância da polícia para o controle do crime teme a violência com que, geralmente, agem as forças policiais cotidianamente.

O atual comportamento violento e arbitrário das polícias tem uma de suas explicações, na forma como estas instituições foram estruturadas durante a ditadura militar brasileira. A esse respeito, a Comissão Nacional da Verdade incluiu no rol de 29 recomendações dirigidas ao poder público, algumas que se relacionam diretamente com a reforma das polícias. Seu objetivo é o de prevenir novas violações de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover o aprofundamento do Estado democrático de direito.

Essas recomendações da CNV também visam deixar claro que, em sociedades democráticas, é necessário haver disposição para se controlar de perto o aparato policial, com o intuito de que se interrompa o ciclo de violência praticado por estas instituições. Em síntese, as recomendações apontam para:

  • A necessidade de um maior controle externo sobre as atividades policiais.
  • O fortalecimento dos órgãos de controle das forças policiais.
  • Um papel mais ativo do Ministério Público sobre as denúncias de violências cometidas por agentes públicos.
  • Maior responsabilização e punição para agentes públicos que cometeram violações de direitos humanos.
  • Necessidade de uma formação voltada aos direitos humanos direcionadas aos agentes públicos encarregados da repressão.
  • Criação de mecanismos que inibam e combatam a prática de tortura por agentes públicos e principalmente, aponta para a necessidade de desmilitarização da PM.

 

As recomendações da CNV para a transformação das polícias

Mesmo com o processo de redemocratização ocorrido na década de 1980 no Brasil, pouca coisa mudou na maneira como as polícias atuam. Não se passa um dia sem que se registrem casos de mortes cometidas por policiais, sob a alegação dos governos de que tais mortes são resultado de um legítimo confronto entre bandidos e agentes da lei. Entretanto, é preciso investigar e compreender o que está por trás de tantas mortes descritas pelas polícias como “legítimas”. É nesse sentido que algumas das recomendações elaboradas pela CNV, no ano de 2014, dizem respeito tanto aos crimes cometidos pelas forças policiais da ditadura, quanto a aqueles que continuam sendo cometidos por policiais cotidianamente.

Dentre as recomendações, sobressaem aquelas em que se exige mais fiscalização, punição e a responsabilização dos agentes estatais que cometem crimes no exercício de sua função. Para efetivá-las, o poder público deve estar ciente claro do que está por trás destas mortes descritas por policiais como “legítimas”, considerando-se que toda e qualquer violência cometida por agentes do estado deve ser apurada e responsabilizada. Igualmente importantes, são as recomendações que apontam para a necessidade de eliminação das figuras jurídicas que dão amparo legal a estas mortes, como é o auto de resistência à prisão, ou as que sustentam a  necessidade de uma atuação mais ativa dos órgãos de controle da polícia.

Afinal, a impunidade sobre estas mortes acaba perpetuando a existência de uma polícia violenta, arbitrária e letal, que tem suas origens na época da ditadura militar. Isso significa, que em grande medida, a impunidade de hoje pode ser vista como uma consequência da falta de responsabilização dos crimes cometidos por policias, Forças Armadas e agentes do Estado na época da ditadura. Crimes estes que foram autoanistiados com a Lei de Anistia de 1979, a qual ainda não foi revista pelo Estado.

Na recomendação de nº 2, feita no relatório da CNV, lê-se a seguinte exigência:

Determinação, pelos órgãos competentes, da responsabilidade jurídica – criminal, civil e administrativa – dos agentes públicos que deram causa às graves violações de direitos humanos ocorridas no período investigado pela CNV, afastando-se, em relação a esses agentes, a aplicação dos dispositivos concessivos de anistia inscritos nos artigos da Lei nº 6683, de 28 de agosto de 1979, e em outras disposições constitucionais e legais.

 

Como se vê, tal recomendação direciona-se especificamente aos crimes ocorridos no período que vai de 1961 a 1979. Ela indica ao Estado brasileiro que os agentes públicos que assassinaram, perseguiram e torturaram pessoas nesse período devem ser responsabilizados, partindo-se do entendimento de que tais crimes não podem ser anistiados, como o foram e seguem sendo – por conta da Lei de Anistia de 1979. A Lei de Anistia tem garantido impunidade aos crimes que foram, na maioria dos casos, cometidos por integrantes das Forças Armadas ou da Polícia Militar.

Apesar da recomendação se referir basicamente aos crimes praticados no período que vai de 1961 a 1979, sabe-se que muitos dos crimes cometidos pelo aparato policial-militar, de 1979 em diante, não são tratados enquanto tal. Assim como a recomendação propõe que seja superada a impunidade aos crimes daquele período, é preciso entender como superar a impunidade aos crimes praticados por agentes públicos, que seguiram ocorrendo após o fim da ditadura e que ocorrem até hoje.

Para que isso ocorra, nos dias atuais, é necessário, primeiramente, mudar a classificação penal que caracteriza esses crimes. Tal proposta tem sido alvo de intenso debate no campo da segurança pública brasileira, principalmente na última década, quando os homicídios cometidos por policiais pautaram diversas pesquisas, como as do 10º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e passaram a ser foco de disputas políticas entre movimentos sociais e atores da segurança pública.

No meio policial, tradicionalmente, esses crimes eram classificados como “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”. Contudo, essas classificações têm sido sistematicamente criticadas, pois supõem “exclusão de ilicitude”, ou seja, excluem a possibilidade de que ao praticar os homicídios assim identificados, os policiais envolvidos  tenham agido contrariamente a lei. Isso porque,  segundo o Código Penal, não existe crime se o agente o pratica em estrito cumprimento de dever legal.

Partindo desse entendimento, a CNV elaborou  recomendação n° 24, de suma importância para uma efetiva mudança na atuação letal das polícias nos dias atuais, na qual se pede:

 

Alteração da legislação processual penal para eliminação da figura do auto de resistência à prisão.

 

Em 2016, o Conselho Superior de Polícia e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil baniram o uso da expressão “autos de resistência”. Além disso, em alguns estudos sobre o tema passou-se a adotar o termo “letalidade policial”, com o objetivo de deixar claro de que se tratavam realmente os homicídios e demonstrar a condição letal da ação policial. Nos últimos anos, como forma de evidenciar o homicídio negligenciado pelos “malabarismos” verbais para nomear muitos dos crimes cometidos por seus efetivos, passou-se a adotar o termo “morte em decorrência da ação policial”, ou ainda, “homicídio decorrente de oposição à ação policial”. Há uma evidente limitação dessa última designação, dado que com ela também se sugere que a causa da morte em questão é a resistência à ação policial. Da mesma forma em que ocorre com os termos “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte”, pelos quais se indica uma licitude na ação da polícia, que ao matar estava cumprindo a lei.

Outra recomendação do relatório da CNV indica ser necessária:

Recomendação 20: Desmilitarização das polícias militares estaduais

 

Essa recomendação, traz à tona uma questão que é central nas discussões de todas as organizações que lutam contra a violência do Estado. O tema está em pauta, desde a votação da Constituição Federal de 1988, pois em todo esse período foram poucas as alterações na arquitetura institucional relativa à segurança pública. Dentre as permanências, destaca-se a militarização do policiamento ostensivo, o que faz com que suas políticas de segurança assumam alicerces de estratégias de guerra. De acordo com estas, medidas de exceção, como a letalidade policial e o confronto letal entre população e policiais seriam justificaveis.

Além disso,  há inúmeros casos de violências cometidas por policiais militares durante ações de repressão às manifestações públicas. São casos graves, que vêm se tornando recorrentes, como os que ocorreram durante as chamadas manifestações de junho de 2013  – e também nos anos seguintes – nos quais policiais militares feriram gravemente manifestantes e jornalistas que participavam dos atos políticos.

A incompatibilidade entre as práticas de extrema violência  e os princípios e valores democráticos é vista como uma das consequências da militarização da polícia brasileira. Assim, a recomendação de desmilitarização da Polícia Militar, feita pela CNV, pode ser entendida, como uma proposta de modificação do texto Constitucional, que prevê a existência de uma Polícia Militar atuando como força auxiliar do Exército. Um dos benefícios trazidos pela desmilitarização da PM seria o fim da doutrina de combate ao inimigo, que pauta o policiamento ostensivo. A desmilitarização da polícia não levaria ao fim do policiamento fardado e armado, apenas determinaria que tal policiamento deixaria de estar submetido a doutrinas militares, passando a ser executado por uma polícia civil.

Portanto, a desmilitarização levaria a uma mudança no treinamento e no modo de executar o policiamento ostensivo, hoje desempenhado pela PM. Em consequência, a polícia não poderá mais ver o cidadão como um adversário, ou um inimigo a ser eliminado.  Essa compreensão é manifestada pelas recomendações 5 e 6, do relatório da CNV, as quais apontam para a necessidade de:

 

Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos.

 

Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos.

Ao pleitear essas modificações, o relatório da CNV, aponta para a reforma na formação, no ingresso e na avaliação das Forças Armadas e das polícias, e sugere a implementação dos valores democráticos para os quais são fundamentais a defesa e promoção dos Direitos Humanos. Para se entender como as práticas policias da ditadura continuaram a existir no presente democrático, minando a possibilidade de uma polícia cidadã, defensora dos direitos humanos, é preciso compreender a história e as modificações pelas quais passaram as polícias.

Como eram as polícias brasileiras antes de 1988

A Constituição Federal de 1988, considerada o marco legal que levou o Brasil para um regime democrático, determinou a atual configuração da segurança pública brasileira, embora não tenha alterado na essência as características que foram criadas ainda no período da ditadura militar.  Assim, existe, atualmente, nos municípios do país existe a chamada Guarda Municipal, que está ligada ao Executivo Municipal. Esta polícia é civil, pode ou não usar armas e, geralmente, atua vigiando patrimônios públicos (prédios da administração municipal, museus, etc) e o comércio de rua. Em cada estado, temos duas polícias ligadas ao Poder Executivo Estadual, uma civil chamada Polícia Civil e outra militarizada, chamada Polícia Militar. A Polícia Civil é responsável pelo tratamento judiciário dos crimes e atua após a ocorrência de um crimeTomamos contato com a Polícia Civil quando, por exemplo, vamos às delegacias registrar um Boletim de Ocorrência referente a um roubo, furto, acidentes de trânsito, etc. Os policiais civis, caso seja necessário, após registrarem o Boletim de Ocorrência, procederão com a investigação dos fatos. Quando tiverem uma conclusão sobre os fatos do crime (prova, autores), os delegados de polícia confeccionarão o inquérito policial e os encaminharão ao Ministério Público. .

Já a Polícia Militar é responsável pelo policiamento ostensivo, ou seja, pela vigilância das ruas, atuando na prevenção e na repressão criminal. Existe ainda a Polícia Federal e a Força Nacional, que estão ligadas ao Poder Executivo, fazendo parte da estrutura do federal.

As polícias estaduais, Polícia Militar e Polícia Civil, são instituições que atuaram de forma muito decisiva para determinar os regimes políticos do século XX, como será apresentado nos tópicos abaixo.

 

As polícias antes da ditadura

 

No século XX, e especialmente durante os governos de Vargas, que vigoraram de 1930 a 1945, as forças policiais tiveram um importante papel na sustentação de regimes autoritários. Na época da ditadura Vargas, a polícia era chamada de “polícia política”, pois além de controlar o crime comum nos centros urbanos e rurais – coibindo, por exemplo roubos, furtos e homicídios, as polícias controlavam também os grupos políticos dissidentes. Ou seja, comunistas, anarquistas, ou membros de partidos políticos adversários, os quais passaram a ser vistos como inimigos do Estado.

 

Entre 1946 a 1964, o Brasil viveu um período de democracia, cuja base legal foi a Constituição de 1946O regime democrático que vigorou no Brasil, entre 1946 e 1964, diferia bastante do atual, iniciado em 1988. Entre outros aspectos, entre 1946 e 1964, a democracia não era universal: mais de 50% da população não podia exercer o direito de voto porque só os alfabetizados podiam votar (e havia milhões de analfabetos no país). Outro problema que impedia um número muito grande de pessoas de votar era a dificuldade de acesso aos locais de votação daqueles que moravam nas zonas rurais ou áreas de difícil acesso.. Esta Constituição definiu que o sistema público de segurança deveria ser responsável pela manutenção da ordem na sociedade brasileira. Desta forma, cada estado era o responsável pela administração, treinamento e controle das ações de suas instituições policiais.

Naquele momento, as principais instituições policiais encarregadas de manter a ordem pública eram a Polícia Civil, a Força Pública e a Guarda Civil. A Polícia Civil possuía mais competências em relação às outras duas corporações. Os seus delegados eram as autoridades policiais, enquanto os policiais da Força Pública e da Guarda Civil eram agentes de execução, designados para o patrulhamento das ruas. Eram de responsabilidade dos delegados da Polícia Civil coordenar as tarefas de policiamento e, ao mesmo tempo, coordenar o policiamento ostensivo. Assim, no período:

 

  • À Polícia Civil era encarregada de inúmeras missões, como: autuar em flagrante; efetuar buscas e apreensões; controlar e investigar crimes e conduta política de organizações civis e militares, manter sob vigilância partidos e personalidades políticas; organizar e administrar arquivos policiais; fiscalizar hotéis e pensões, casas de jogos, prestar serviço de identificação, controlar empregados domésticos, menores infratores, prostitutas, mendigos, e a assistência social.
  • A Guarda Civil e a Força Pública realizavam o policiamento ostensivo, ou seja, a vigia das ruas, sendo que a primeira era a responsável pelo policiamento nas capitais, enquanto a segunda era preponderante em cidades do interior.

O contexto histórico em que essas formas de atuação da polícia se davam foi um período bastante conturbado no Brasil, marcado por mudanças profundas na sociedade brasileira. A população deixava de ser predominantemente rural, deslocando-se rumo aos grandes centros urbanos. A urbanização acelerada e desordenada, acompanhada pelo crescimento da população e da concentração de renda, pautava o desenvolvimento econômico – o conjunto dessas transformações resultou em diversos problemas sociais. Os discursos políticos e os jornais da época, relacionavam a pobreza à criminalidade, tidas como ônus do desenvolvimento acelerado. Tal associação, naturalmente, teve consequências nefastas.

 

Os esquadrões da morte

 

Nas décadas de 1950 e 1960, nos centros urbanos brasileiros como Rio de Janeiro e São Paulo, começam a aparecer os chamados “esquadrões da morte”, que eram grupos de policiais que agiam extraoficialmente, especialmente em periferias, exterminando pessoas tidas como “problemas” para a região: furtadores, ladrões, estupradores, arruaceiros.

O surgimento dos esquadrões da morte marcou a segurança pública brasileira, pois revelou como as autoridades policiais, sob a alegação de garantir o controle da violência, passam a usá-la de maneira sub-reptícia, como instrumento de controle do crime. A atuação dos esquadrões da morte, formados por policiais civis e/ou militares, é visível até os dias de hojeEm 2015, por exemplo, numa periferia da grande São Paulo, numa mesma ação, 23 pessoas foram mortas por pessoas armadas e encapuzadas. As especulações sugerem que um grupo de policiais seja o responsável pelos assassinatos. Para mais informações ver: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/08/chacinas-na-grande-sp-fazem-um-ano-com-23-mortos-e-4-agentes-presos.html. Infelizmente, as instituições de controle das polícias pouco têm se dedicado a investigar ou coibir a ação destes policiais.

 

Vale destacar que estas mortes cometidas por policiais de maneira ilegal e extraoficial, desde aquela época até os dias de hoje, não são contabilizadas como “mortes decorrentes da ação policial”. Muitas das pessoas vítimas destes esquadrões são abandonadas, após serem mortas, em terrenos baldios ou tem seus corpos queimados, dificultando a identificação. Desta forma, não se sabem quantas pessoas foram e são mortas pelos chamados “Esquadrões da Morte”.

 

Desta forma, a democracia brasileira teve dificuldades com a implementação de reformas no sistema policial no sentido de promover práticas condizentes às obrigações constitucionais daquela época e formar uma polícia que se adequasse a paulatina construção de uma sociedade democrática. O obstáculo era vencer as heranças deixadas pelo sistema político anterior – a ditadura da Era Vargas, em especial – nas instituições policiais, e passar a atender ao padrão de policiamento dentro da legalidade, em face do crescimento urbano, manifestações civis, além do crescimento da violência e criminalidade. Trata-se de um período em que os policiais prendiam as pessoas por meses para averiguações, sem que houvesse necessidade de registros. Realizavam abordagens policiais com violência e marcadas pela corrupção policial.

 

Para saber mais:

 

– Polícia no período colonial brasileiro: COTTA, Francis Albert. Matrizes do sistema policial brasileiro. Belo Horizonte: Crisálida, 2012 ou FARIA, Regina Helena Martins. Em nome da ordem: a constituição dos aparatos policiais no universo luso-brasileiro (séculos XVIII-XIX). Tese (doutorado) — Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.

– Forças policiais no período do império brasileiro ver: HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro. Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997 e o livro Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida.

 

– Para mais informações sobre as polícias no Império e na Primeira República brasileira ver: ROSEMBERG, André. “Herói, vilão ou mequetrefe: a representação da polícia e do policial no Império e na Primeira República”, Tempo de Histórias, n. 13, p. 63-81, 2008. Também sobre a virada do século XIX para o século XX, o livro Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, mostra a relação violenta entre os forças de segurança e os sertanejos que viviam em Canudos, que culminou no extermínio da população que vivia na vila de Canudos.

– Polícia nas décadas de 1940 até 1960: BATTIBUGLI, Thaís. Democracia e segurança pública em São Paulo (1946-1964). Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2006 e MANSO, Bruno Paes. Crescimento e queda dos homicídios em SP entre 1960 e 2010. Uma análise dos mecanismos da escolha homicida e das carreiras no crime. 2012. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo: neste trabalho, o autor relata que em abril de 1949, o jornal A Noite criticava os métodos de “policiais boçais, sádicos, para arrancar a confissão de um delinquente, substituindo a argúcia pela borracha e a habilidade pela tortura”, como as pontas de charuto acesas, surras de chicotes de arames, choques elétricos e espancamentos. As denúncias foram publicadas pelo jornal depois da visita de um juiz corregedor ao Departamento de Investigações da Polícia Civil, naquele ano.

– Sobre a tortura e esquadrões da morte p na segunda metade do século XX ver o filme “Você também pode ser dar presunto legal”, Sérgio Muniz, 1973. O documentário foca nas ações do delegado Sérgio Fleury e do Esquadrão da Morte, alternando matérias de jornal e imagens da época com depoimentos de torturados e fragmentos das peças “A Resistível Ascensão de Arturo Ui” (Bertold Brecht) e “O Interrogatório” (Peter Weiss).

– Documentário sobre Esquadrões da Morte. “HIGHLANDERS – OS CORTADORES DE CABEÇA “POLICIAIS ASSASSINOS”, produzido pelo Jornal Record. 11/05/2015 https://www.youtube.com/watch?v=sM4C6N954HY

 

Forças policiais e ditadura: o surgimento das Polícias Militares

As Polícias Militares (PM) surgiram durante a ditadura militar e até hoje são instituições presentes na segurança pública brasileira, encarregadas de exercer o policiamento ostensivo, ou a vigilância das ruas. A incorporação das PM na arquitetura da segurança pública brasileira foi acompanhada pelo crescimento do fenômeno da letalidade policialLetalidade policial é quando o policial mata uma pessoa durante uma operação policial. Esta morte poderá ou não ser classificada nos registros oficiais como homicídio, a depender da apuração das circunstâncias em que o fato ocorreu. Entretanto, como dito anteriormente, a maioria destas mortes é classificada como “legítima defesa”, pois supõe “exclusão de ilicitude” por parte do agente policial.. Em diferentes estudos e pesquisasDados extraídos dos trabalhos de Bruno Paes Manso (2002), Caco Barcelos (1992), Caldeira (2000) e Bueno (2014). sobre a letalidade policial, na cidade de São PauloInfelizmente, não temos dados disponíveis para outras regiões do país no período, por isso são apresentados os dados da cidade de São Paulo, apesar da baixa confiabilidade nos registros da época., apresenta-se que em 1960 foi encontrado um único óbito cometido oficialmente pelas forças policiais. Em 1965, foram encontradas duas mortes. Na década de 1970, quando a Polícia Militar passa a patrulhar as ruas da cidade, 28 pessoas foram mortas pelas polícias. O número passou a ser cada vez maior nos anos seguintes. Em 1980, os registros apontaram 280 pessoas mortas pela polícia na capital. No ano seguinte, 300 pessoas foram mortas pela polícia. Em 1985, o total alcançou 583 casos. Sete anos depois, em 1992, as mortes cometidas pela polícia haviam ultrapassado as mil ocorrências. Este quadro se intensificou nos anos seguintes, assumindo proporções ainda maiores no ano de 2015, quando 3.345 pessoas foram vitimadas por intervenções “legais” em todo o país.

 

Apesar da prática dos homicídios como forma de “limpeza social” tangenciar as organizações policiais desde as décadas de 1960 e 1970, naquele momento havia a necessidade de lidar com as mortes cometidas por policiais no âmbito das atividades extraoficiais. A morte em decorrência da ação policial, como uma ação passível de ser registrada pelas instituições policiais, passa a ser parte do cotidiano policial apenas nos anos de 1970, com a entrada da Polícia Militar no policiamento ostensivo.

 

Em 1964, o golpe militar interrompeu a democracia brasileira. Estabeleceu um regime autoritário, conduzido por militares e civis, que iria se estender até 1988. O Golpe de 1964 foi realizado por uma coligação de forças e interesses, composta pelo grande empresariado brasileiro, por latifundiários – proprietários de grandes parcelas de terras, e por empresas estrangeiras instaladas no país, sobretudo aquelas ligadas ao setor automobilístico. A conspiração contou com a participação de setores das Forças Armadas, aos quais aderiu a maioria da oficialidade, diante da passividade da liderança militar legalista, ou aquela que era contra um golpe de força contra o presidente eleito.

Com o regime militar houve a ampliação do poder das Forças Armadas, justificada a partir da noção de inimigo interno, inscrita na Doutrina de Segurança NacionalA Doutrina de Segurança Nacional foi um decreto elaborado pela Escola Superior de Guerra que permitiu ao regime ditatorial perseguir e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, aqueles que eram considerados pela ditadura como ameaças à ordem estabelecida por questionarem e se oporem ao regime autoritário. A Doutrina surgiu na esteira da perseguição aos comunistas, no contexto da Guerra Fria, no entanto permitiu que não apenas comunistas e opositores fossem perseguidos, mas muitos outros que foram considerados “inimigos da nação” ou “ameaças a segurança do país”., desenvolvida pela Escola Superior de Guerra do Exército brasileiro e institucionalizada pela Lei de Segurança Nacional de 1967.

Foram tempos difíceis, em que o poder estava na mão dos militares: eles controlavam o país por meio da censura e da repressão. A violência dos agentes estatais atinge o ápice com o advento do AI nº 5, assim como o medo e a prática da tortura. A partir do AI- 5, instala-se uma ditadura mais severa e os militares passaram a assassinar sistematicamente os que se opunham ao seu governo.

Naquele tempo, qualquer contestação política moderada, um protesto por liberdades democráticas, a manifestação de uma opinião crítica ao regime ou ao sistema capitalista, poderiam ser interpretadas como “subversão”, dado o poder arbitrário e a amplitude da Lei de Segurança Nacional. O conceito de “crime político”, portanto, equivalia ao conceito de crime de guerra, ancorado na tradição dos crimes de “lesa-pátria”, isto é, contra a pátria. Neste contexto, durante a ditadura militar, da mesma forma que na Era Vargas, o aparato policial foi utilizado para conter a oposição política, com a violência policial sendo o instrumento amplamente utilizado contra a dissidência política.

 

 

O DOI-CODI e a repressão política

 

Após a decretação do AI-5, no final de 1968, , alguns órgãos foram criados com o objetivo de garantir a ordem desejada pelo regime militar. Um dos mais conhecidos é o DOI-CODI, cujos prédios foram o cenário da maioria dos assassinatos e torturas dos opositores do sistema no período.

O Destacamento de Operações de Informações (DOI) tornou-se a instituição responsável pela inteligência e repressão do governo, estando subordinado ao Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). A ação conjunta destes dois órgãos gerou a temida instituição de repressão da ditadura militar conhecida como DOI-CODI, que reunia agentes policiais das três armas, policiais militares estaduais, Polícias Civil e Federal, todas sob um mesmo comando. As polícias militares e as polícias civis, naquele período, atuaram tanto na manutenção da “ordem”, do regime militar segundo as ideologias da Doutrina de Segurança NacionalA Doutrina de Segurança Nacional foi um decreto elaborado pela Escola Superior de Guerra que permitiu ao regime ditatorial perseguir e eliminar os “inimigos internos”, ou seja, aqueles que eram considerados pela ditadura como ameaças à ordem estabelecida por questionarem e se oporem ao regime autoritário. A Doutrina surgiu na esteira da perseguição aos comunistas, no contexto da Guerra Fria, no entanto permitiu que não apenas comunistas e opositores fossem perseguidos, mas muitos outros que foram considerados “inimigos da nação” ou “ameaças a segurança do país”., como também realizavam o controle do crime comum – como nos dias de hoje.

 

No período da ditadura militar, a PM ficou responsável tanto pela repressão política, relacionada ao regime ditatorial, como pela repressão da criminalidade urbana a partir da vigilância das ruas. A entrada da PM no policiamento ostensivo nos anos de 1970 marcou a segurança pública brasileira, pois coincidiu com o início do crescimento da letalidade policial no cenário urbano até os dias atuais.

 

Os DOI-CODI ficaram amplamente conhecidos como centros de tortura e repressão. Os dois maiores estabelecimentos do DOI-CODI localizavam-se em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na primeira cidade, era instalado onde hoje funciona o 36º Distrito Policial, na rua Tutóia. Já no Rio de Janeiro era localizado na rua Barão de Mesquita nº425, na Barra da Tijuca, mesmo endereço do quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército. Em ambos os lugares, assim como em vários outros estados, os DOI-CODI capturaram e exerceram torturas e assassinatos a muitos opositores do sistema.

 

Polícia Militar: uma invenção da ditadura

 

Uma das principais marcas deixadas pela ditadura militar é o policiamento ostensivo militarizado, feito por policiais militares altamente armados, que todos os dias realizam a vigia das ruas para coibir e reprimir crimes.

Embora antes de 1964, a Força Pública também fosse uma polícia militarizada, ela era treinada para situações críticas de defesa da ordem pública. No dia a dia, essa polícia tinha pouco contato com a população. Cumpria um papel secundário de policiamento do interior e das áreas mais próximas aos quartéis na capital. Ao contrário, a Polícia Militar está todos os dias em contato direto com a população. A militarização do policiamento ostensivo foi, portanto, iniciada na época da ditadura militar, traz consequências para os dias de hoje, uma vez que a Constituição de 1988 não alterou essa situação e nem criou um policiamento ostensivo civil. A vigilância das ruas permanece, portanto, nas mãos de uma polícia militarizada, treinada para “eliminar” o inimigo e não para promover a segurança pública.

 

Nos anos de 1970, a violência urbana nas grandes cidades passa a ser marcada pelo crescente número de crimes patrimoniais e contra a vida. É neste mesmo período que a Polícia Militar também vai começar a atuar de maneira mais violenta nas periferias das cidades e também contra dissidentes políticos. Para muitas pessoas daquela época e também dos dias de hoje, a violência policial é vista como um instrumento legítimo de controle do crime. Assim, o medo e a construção social da imagem do “bandido” como alguém que merece ser assassinado, fez e faz com que pessoas tolerem os homicídios cometidos por policiais desde que as vítimas sejam supostos “bandidos”.

 

Para saber mais:

– Os filmes Pra Frente Brasil (Roberto Farias, 1982) e E Agora, José? (Ody Fraga, 1979) retratam as torturas e violações cometidas por agentes do estado durante o período da ditadura.

 

A redemocratização dos anos de 1980 e as tímidas mudanças na segurança pública brasileira

Desde a década de 1980, parte da sociedade brasileira acompanhou o processo de democratização de suas instituições. Após um período de consultas públicas e debate entre sociedade civil organizada e setores estatais, durante a Assembleia Nacional Constituinte, houve a elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Neste trabalho de transição, os movimentos sociais tiveram certo êxito, mesmo que parcial, ao condensarem demandas dispares para a inclusão de direitos sociais e culturais de grupos marginalizados, politicamente e socialmente.

A nova Constituição trouxe várias inovações, restabeleceu os direitos políticos das pessoas, possibilitou o surgimento de partidos políticos, eliminou a barreira do voto aos analfabetos. Também ampliou, de maneira significativa, os mecanismos de participação da sociedade civil na esfera estatal, criando instâncias decisórias sobre a formulação de políticas públicas com participação da sociedade civil. Entretanto, as transformações em relação às instituições policiais foram poucas. Na década de 1990, os novos episódios de violência policial e tortura em delegacias tornaram-se mais evidentes, mostrando à sociedade brasileira como seria difícil democratizar a polícia no país.

 

 

Mudanças pouco significativas na função da polícia

 

Com a Constituição de 1988, a repressão policial e a tortura amplamente praticada pelo regime político militar foram criminalizadas. A participação democrática foi institucionalizada, garantindo-se direitos políticos e direitos sociais, o que motivou a luta e a pressão dos movimentos sociais para a efetivação e expansão dos direitos conquistados e da garantia de acesso à justiça a todos os segmentos da população.

No entanto, a segurança foi a área do serviço público que, talvez, tenha progredido menos em termos democráticos. A Constituição Democrática de 1988 não trouxe mudanças significativas para as instituições da segurança pública, com exceção da modificação nominal e simbólica do papel da polícia. De acordo com a Carta Constitucional, a PM não deveria mais agir de acordo com a “segurança nacional”, e sim com os pressupostos de uma segurança pública, ela não deveria mais ter a função de proteger o Estado, ganhando a nova atribuição de proteger os cidadãos. Entretanto, tal mudança nos termos da Constituição não representou uma ruptura nos modos como essas instituições atuavam.

 

A imutabilidade do campo da segurança pública pós-ditadura militar muito se deve à relutância das organizações da sociedade civil e especialistas no tema em se envolverem em questões de segurança pública e reforma policial durante a Constituinte. Durante a Constituinte, a sociedade civil se manteve no papel de denunciante dos casos de violações nos direitos humanos, ocorridos na época da ditadura. Todavia, para mudar as formas como as polícias agiam era necessária uma interação entre a sociedade civil e elementos progressistas das polícias, algo que não ocorreu, dada a tensa relação entre polícia e população naquele momento.

 

Dessa forma, o “caminho ficou livre” para que setores de direita da política brasileira, que estavam na Constituinte, se apropriassem do campo da segurança pública e fizessem valer as propostas conservadoras que reservavam para ele. Desta forma, as poucas transformações democráticas realizadas no campo da segurança pública brasileira podem ser vistas, em parte, como resultado da incapacidade dos atores políticos da Constituinte de lidarem com o tema da segurança pública e darem um significado à questão, para além do abandono do termo segurança nacional.

 

Segurança pública e violência policial nos anos de 1990

 

No período democrático, foram levadas a prática algumas experiências pontuais com modelos alternativos de policiamento comunitário. Mas, no geral, a polícia brasileira permaneceu organizada segundo os pressupostos do ultrapassado modelo de policiamento do período ditatorial. Da mesma forma que na ditadura militar, a Polícia Civil e a Polícia Militar continuaram responsáveis pelo controle do crime, num ciclo policial repartido: o policiamento ostensivo continuou sob a responsabilidade da PM e a polícia judiciária (apuração dos crimes) ficou sob a responsabilidade da Polícia Civil.

Nos anos de 1990, a segurança pública tornou-se um problema social que preocupava a todos, passando a ocupar o espaço público por intermédio de atores sociais variados e de entes institucionais. Desde aquele momento, a sociedade brasileira passou a viver períodos de intensificação da criminalidade urbana e da violência, com os números de crimes violentos cresciam a cada dia.

Como resposta, a polícia intensificou a sua maneira usual de atuar nas abordagens policiais e nas operações. No entanto, isso não contribuía em nada para aumentar o sentimento de segurança da população. De um lado, as pessoas se viam reféns da criminalidade urbana. De outro, estavam assustadas com aquele modelo de atuação policial, marcado por abordagens truculentas, invasão de residências para busca de suspeitos, ou ainda pelas mortes cometidas por policiais durante o cotidiano de repressão ao crime.

A violência policial dos anos de 1990 foi tomada como evidência da dificuldade das instituições policiais em incorporar valores de respeito aos direitos individuais. Também era apontada como um entrave à consolidação da democracia brasileira. Trata-se de um período marcado pela persistência das práticas violentas e arbitrárias da polícia em face ao crescimento da violência urbana e pela impermeabilidade das forças policiais às reformas e controles externos.

 

Nos anos de 1990 ocorreu um fato de extrema violência policial que ficou conhecido como o Massacre do Carandiru. No ano de 1992, o complexo penitenciário do Carandiru, localizado na cidade de São Paulo, vivia tempos de superlotação e déficit de vagas em razão do crescimento da população prisional. Na época, era comum se referirem ao Carandiru como uma “bomba” prestes a explodir dentro do perímetro urbano de São Paulo. Foi o que ocorreu no ano de 1992 quando uma rebelião dos presos, que ganhou repercussão na mídia sendo transmitida ao vivo, foi duramente reprimida pela PMESP a pedido do governador. O episódio resultou na morte de 111 presos e nenhum policial. Em 2016 o Tribunal de Justiça de SP anulou os julgamentos que condenaram 74 policiais militares pelo massacre do Carandiru. A impunidade em relação aos desdobramentos do ocorrido, a implosão do complexo Carandiru e a expansão das unidades prisionais pelo interior do estado marcaram as políticas de controle do crime paulista nos anos seguintes.

 

Para saber mais:

O filme Carandiru, do diretor Hector Babenco, datado de 2003, retrata e traz mais informações sobre este acontecimento. Vale a pena assisti-lo.

 

A polícia dos dias atuais

Os números atuais da segurança pública brasileira não deixam dúvidas: a violência letal que tem como vítimas preferenciais os jovens – em sua maioria negros e pobres – é provocada pela atuação das instituições de segurança pública, em especial da PM. Esta violência policial é fruto tanto da ação direta, mediante intervenção policial, quanto da omissão de orgãos de controle das polícias, como as Corregedorias de Polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário.

Nos últimos 30 anos, o Brasil melhorou de forma substantiva seus indicadores socioeconômicos de renda, emprego, escolarização, saúde. Entretanto, os indicadores da segurança pública nos mostram uma realidade bem menos otimista. A esse respeito , é interessante observar os dados trazidos pelo 10º Anuário de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que foi publicado em 2016, mas que traz as informações referentes ao ano de 2015.

 

Apesar de tantos homicídios ocorrendo todos os dias no país, são bastaste incipientes as taxas de esclarecimento desde tipo de crime pela Polícia Civil, ou seja, a verificação de quem são os autores destas mortes. Segundo relatório produzido pela Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), em 2011, estima-se que o índice de esclarecimento dos homicídios no Brasil varie entre 5% e 8%. Isto significa que apenas uma parcela ínfima dos autores de homicídios são identificados e, por isso, não serão processados pelo sistema de justiça criminal.

Outro dado, esse trazido pelo 10º Anuário de Segurança Pública, se refere à violência cometida por policiais ou sofrida por eles. Segundo a pesquisa, a polícia brasileira mata e morre muito. Pela análise dos dados incluídos no Anuário, é possível concluir que a polícia brasileira é violenta: 70% das pessoas entrevistadas acham que as polícias exageram no uso da violência. Mesmo assim, o aparato policial tem suas ações legitimadas por parte da população, visto que metade dos entrevistados, ou 50%, acha que a PM é eficiente em garantir a segurança da população e 52% acreditam que a Polícia Civil é eficiente no esclarecimento de crimes. Desta forma, a questão da violência policial é um tema difícil, porque apesar de vitimar todos os dias muitas pessoas – na sua maioria jovens negros e pobres – ela é autorizada tacitamente a agir como tal por uma grande parte da população brasileira.

Além de apoiada por parte da população, a continuidade das mortes cometidas por policiais só é possível porque tem o endosso de outras instituições do sistema de justiça criminal brasileiro. No estado de São Paulo, por exemplo, dos autos remetidos à Justiça Militar de São Paulo, o Ministério Público só propõe denúncia contra policiais em 10% dos Inquéritos Policiais Militares remetidos para a sua análise, incluindo-se os casos de mortes por intervenção policial. Há, portanto, aceitação por parte do Poder Judiciário da forma como a polícia tem desempenhado suas intervenções. Isso, apesar dos alarmantes números da letalidade policial.

 

Os homicídios cometidos por policiais e o genocídio da juventude negra

 

A brandura nas leis brasileiras para com a letalidade policial é uma grave ameaça aos direitos humanos e um risco à população atendida pelas polícias. É evidente que se trata de uma violação que atinge especialmente jovens negros e moradores de periferias, como têm demonstrado os dados da segurança pública no Brasil. Infelizmente, não existem pesquisas que analisem a questão da letalidade, enfocando a cor/raça das vítimas, para todos os estados do Brasil. A esse respeito, no entanto, o estudo “Segurança Pública e Direitos Humanos: temas transversais”, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, realizado em 2014, nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, comprovou que a polícia mata mais negros do que brancos e que as vítimas são jovens, com até 29 anos, nestes estados.

Nos três estados em que a pesquisa foi realizada, verificou-se que a maioria destas vítimas tinha menos de 29 anos. Os números apontam para o reconhecimento de um racismo institucional operando no cotidiano das polícias no Brasil, que culmina no elevado número de jovens e negros que são vitimados pela política, intensificando a desigualdade racial no Brasil. Além dos números, essa realidade é relatada cotidianamente por centenas de mães e familiares destes jovens, que vão aos jornais denunciar a morte de seus filhos, formam associações e realizam protestos pelo país, em que pedem a punição aos policiais e o fim desta triste realidade.

As denúncias sobre a violência policial nas abordagens são formuladas por coletivos do associativismo antirracistaSão considerados ativistas do associativismo antirracista: militantes do movimento negro e pela igualdade racial, membros de instituições participativas que formulam políticas públicas, como conselhos, integrantes de ouvidorias e pessoas que tenham sofrido práticas discriminatórias de policiais. Estes ativistas lutam pelo entendimento de que, em uma sociedade estruturalmente racista e discriminatória, a raça funciona como produtora de desigualdades nas relações sociais, políticas e jurídicas; lutando assim pelo fim destas desigualdades e discriminações. que começaram a despontar no espaço público com esta pauta nos anos 2000. Na denúncia destes coletivosDestacam-se os movimentos chamados “Mães de Maio” e “Contra o Genocídio do Povo Negro”. O primeiro surgiu em 2006, no estado de São Paulo, e é formado por uma rede de mães, outros parentes e amigos de pessoas mortas em decorrência de ações policiais nos episódios de maio de 2006, quando policiais e grupos paramilitares de extermínio promoveram uma “onda de resposta” ao que se chamou na grande imprensa de “ataques do PCC”. Foram assassinadas no mínimo 493 pessoas - que hoje constam entre mortas e desaparecidas. Há estudos, no entanto, que apontam para um número ainda maior de assassinatos no período, considerando ocultações de cadáveres, falsificações de laudos e outros recursos utilizados por tais agentes públicos violentos. Um acontecimento que vitimou, sobretudo, jovens pobres negros. Já o segundo é um grupo formado sobretudo coletivos do associativismo antirracistas que denunciam a questão racial como causa da desvantagem nas mortes e prisões de jovens negros pela polícia. O grupo surgiu em 2012 diante de outro episódio de confronto entre policiais e o PCC, que gerou inúmeras mortes em periferias, resultado de execuções ou ações policiais., aparece a reiteração de um padrão de atuação policial que não é apenas violento, mas que também tem como alvo um público específico (jovens pobres negros), identificado sempre como suspeito de de cometer crimes. Tais ações, segundo os movimentos sociais, não são voltadas somente contra aqueles que, de fato, cometeram delitos, mas recaem genericamente sobre um conjunto da população objetivamente marcado por raça, classe, território, idade e gênero. Amparados em pesquisas recentesDestacam-se “Mapa da Violência: a anatomia dos homicídios no Brasil” (2011), que pela primeira vez trouxe um recorte de gênero e raça nos dados sobre homicídios no Brasil; “Mapa da Violência: a cor dos homicídios no Brasil” (2012); “Mapa da Violência. Os jovens do Brasil” (2011 e 2014); “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência” (2012); “Vidas Perdidas e o Racismo no Brasil” (2013); “Segurança Pública e Relações Raciais no Brasil: a filtragem racial na seleção policial de suspeitos” (2014); “Segurança Pública e Desigualdade Racial: letalidade policial e prisões em flagrante no estado de São Paulo” (2014); “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e desigualdade racial” (2014); Anuários de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. sobre o perfil das vítimas dos homicídios no Brasil, os movimentos argumentam que a Polícia Militar tem sido a responsável pelo “genocídio da juventude negra no país” – nomeação própria destes coletivos.

 

Os “alvos” da PM e a seletividade penal

 

Qual a relação da Polícia Militar e os números da segurança pública apresentados anteriormente? A resposta a esta pergunta fica mais clara quando sabemos que, em consequência do modelo policial repartido entre Polícia Civil e Polícia Militar, a PM não tem a responsabilidade de investigar crimes, função que é exclusiva da Polícia Civil. Em função disso, os crimes priorizados pela PM são aqueles passíveis de identificação em flagrante delito, ou seja, aqueles crimes que um policial consegue identificar andando nas ruas e vigiando as pessoas, como furtos de celulares, comércio de pequenas quantidades de drogas. Isso significa que outros tipos de crimes, como homicídios, grandes vendas de drogas, lavagem de dinheiro, entre outros, não serão detectadas pelos olhos dos policiais que realizam o policiamento ostensivo.

Além disso, alguns tipos de crimes, territórios periféricos e determinados grupos populacionais são os “alvos” preferenciais da atuação da PM e, consequentemente, do sistema de justiça. Desta forma, a seletividade da atuação policial da PM vai colocar dentro das prisões, na grande maioria das vezes, jovens negros e pobres, que cometeram crimes patrimoniais ou estão ligados ao comércio de drogas.

Esta característica do sistema de justiça criminal, que privilegia a punição de certo perfil de pessoas, ou de algumas condutas criminais, e age com brandura e displicência diante de com outras condutas, é chamada de seletividade na ação policial, definição que se estende a procedimento semelhante no sistema de justiça criminal.

Dois fatores são de suma importância e incrementam a seletividade penal no Brasil. O primeiro se refere às desigualdades da sociedade brasileira, que se manifestam inclusive no acesso à justiça: se necessário, algumas pessoas poderão contratar advogados, pagar fianças e, assim, terão direito à defesa, enquanto outras não terão essa possibilidade porque não podem arcar com os gastos necessários. O segundo fator se refere ao racismo estrutural que perpassa as instituições do sistema de justiça no Brasil, isto é, para agentes do sistema de justiça criminal e da segurança pública, pessoas negras já são consideradas, de antemão, culpadas, antes mesmo do devido processo legal de apuração de um crime. Desta forma, em razão da sua posição social e/ou da cor/raça, as pessoas serão mais ou menos vigiadas pelas polícias, mais ou menos detidas em flagrante delito, mais ou menos processadas por cometerem crimes.

Assim, em razão da seletividade no sistema de justiça criminal no Brasil, existe um acúmulo de desvantagens para os jovens negros e pobres, em relação ao restante da população – especialmente no que tange ao direito à vida segura e ao risco maior que correm de serem presos por crimes patrimoniais.

 

Para saber mais:

– Seletividade do sistema de justiça criminal: Em seu livro A Justiça Perto do Povo Reforma e Gestão de Conflitos, Jacqueline Sinhoretto (2014) define a seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro da seguinte forma: “(…) trata-se de pensar em como as instituições do sistema de justiça operaram constrangimentos e seleções para certos atores sociais que movimentam suas habilidades e capitais na tentativa de lidar com os filtros institucionais. Os mais bem afortunados são aqueles cujas demandas por justiça transitam facilmente pelas estruturas judiciais e suas infrações atraem pouca atenção da repressão penal. Os desfavorecidos são os que atraem a repressão penal aos seus modos de morar, trabalhar, comerciar, viver e encontram muitas dificuldades em administrar os conflitos de que são protagonistas por regras e procedimentos estatais”.

 

– Sobre a seletividade da polícia militar no policiamento.

Um filme interessante sobre o racismo estrutural nas policias brasileira é Branco sai, preto fica (Adirley Queirós, 2015). O seu título refere-se a frase pronunciada por um policial durante a invasão a um baile popular nos anos 1980. Ou, como explica um dos personagens do filme, logo em sua intervenção inicial, segundo os policiais, os brancos devem deixar o salão, os pretos ficam e apanham.

 

– Sobre letalidade policial.

No ano de 2016, o rapper Emicida lançou a música “Chapa” em que aborda o crescimento da violência policial no país. No clipe da música, o rapper que foi também o diretor do clipe, foca o enredo no ponto de vista de cinco mães, integrantes do movimento Mães de Maio, que perderam o filho por conta da violência policial, no ano de 2006. Para ouvir a música: clique aqui. (https://www.youtube.com/watch?v=TRh7CE8GcG4)

 

 

Propostas de mudança da segurança pública

PECs

As chamadas PECs, ou Propostas de Emenda Constitucional, são recursos utilizados pelos legisladores com o intuito de emendar, ou alterar – para melhor ou para pior – as disposições da Constituição democrática de 1988. Hoje, muitos legisladores têm encaminhado propostas de modificações na arquitetura institucional da segurança pública por meio de PECs. Dentre estas Propostas de Emenda Constitucional, destaca-se a de no 51, em curso desde 2013, de autoria do deputado Lindbergh Farias (PT-RJ). Já em trâmite no Senado Federal, esta PEC, cujo principal redator o antropólogo e Ex-Secretário Nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares, propõe a implementação do ciclo completo, da carreira única e da desmilitarização, ou seja, desvinculação das forças armadas.

O projeto prevê que todos os órgãos policiais sejam organizados em carreira única, e que os estados tenham autonomia para estruturar seus próprios órgãos de segurança pública. À nova polícia caberia tanto o trabalho ostensivo, como a investigação de delitos, funções hoje atribuídas, respectivamente, às polícias militar e civil. Para seus autores, a desmilitarização da PM é de suma importância para o fortalecimento de uma segurança pública cidadã, pois esta instituição, ao se orientar pela ideia de que um inimigo precisa ser eliminado, ela ignora que deve garantir os direitos de todos os cidadãos – visto que em decorrência de seu caráter militarizado, a função atribuída à PM é a de preservação do Estado e da ordem, em detrimento dos direitos dos cidadãos.

Outra PEC relacionada à reforma da segurança pública brasileira, a de nº 431, de 2014, de autoria do deputado licenciado Subtenente Gonzaga (PDT-MG), que tramita na Câmara dos Deputados. Sua proposta é ampliar a competência da Polícia Militar (PM), dando-lhe atribuições de polícia judiciária, com poderes de investigação.

Conforme a Constituição Federal, as atividades de polícia judiciária são de responsabilidade das Polícias Civil e Federal. A polícia judiciária é um órgão da segurança do Estado que tem como principal função apurar as infrações penais e a autoria desses crimes. Entretanto, esta PEC prevê que a PM terá competência para realizar o “ciclo completo de polícia”, durante a persecução (perseguição) penal, além das atribuições de polícia ostensiva e de preservação da ordem pública, que ela já possui, de acordo com a Constituição.

Assim como a PEC nº 51, esta segunda também defende o ciclo completo, mas traz a vinculação constitucional do orçamento da segurança, como ocorre, até o momento, na Saúde e na Educação. Uma diferença notável entre as duas PEC é que a segunda, de autoria do deputado licenciado Subtenente Gonzaga (PDT-MG), não tem a proposta de desmilitarizar totalmente a PM.

Verifica-se, contudo, que o ciclo completo é, aparentemente, um consenso entre os projetos dos parlamentares.

 

As CPIs e o enfrentamento ao homicídio de jovens no Brasil

 

Em 2015, o deputado federal Reginaldo Lopes (PT-MG), propôs a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as “causas e os custos sociais e econômicos da violência contra jovens negros e pobres no Brasil”. Na ocasião, o deputado ressaltou que, “de 60 mil homicídios anuais no Brasil, 80% têm como vítimas jovens negros. Precisamos dar visibilidade a esse problema no País. O que está acontecendo no Brasil é um genocídio em relação aos jovens negros”.

A proposta de Reginaldo Lopes foi aceita pela a Câmara dos Deputados, criando-se a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Essa comissão formulou o Projeto de Lei PL 2438/2015, que institui o “Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens, estabelece a sua avaliação e dá outras providências”. No final de 2016, esse Projeto de Lei ainda aguardava o parecer do relator na Comissão Especial.

Em 2015, também foi criada a Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens (CPIADJ), no Senado Federal. Presidida pela Senadora Lídice da Mata (PSB/BA) e relatada pelo Senador Lindbergh Farias (PT/RJ), esta CPI teve seu relatório final aprovado em junho de 2016. Além de analisar os dados sobre violência, recebidos das secretarias de segurança pública e defesa social estaduais, a CPI ouviu mais de 200 pesquisadores, entre profissionais da área de segurança, organizações da sociedade civil, parlamentares, órgãos públicos e familiares de vítimas. Neste processo, os movimentos sociais, principalmente aqueles representativos de setores do Movimento Negro, ocuparam um importante espaço de voz e enunciação sobre essas questões.

 

O principal resultado da CPI foi pautar e desvelar o tema da violência policial letal contra os jovens negros, em um espaço institucional reconhecidamente conservador, como o Senado. Ressalte-se que a maior parte do relatório produzido pela CPI é dedicada a descrever e analisar a violência policial contra a juventude, não tendo se aprofundado na discussão sobre homicídios de jovens que não têm a participação da polícia.

Assim, as recomendações da CPI são no sentido de que sejam fortalecidos os projetos de lei que tratam da transparência nos dados sobre segurança pública de um plano nacional para redução de homicídios – em que se proponha o fim dos “autos de resistência” – e, ainda, uma PEC que estabelece a desmilitarização e adoção do ciclo completo de polícia.

 

Para saber mais: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/481435-CPI-VAI-INVESTIGAR-VIOLENCIA-CONTRA-JOVENS-NEGROS-NO-BRASIL.html.

Que mudanças queremos?

Uma polícia cidadã e desmilitarizada

 

A atuação violenta da polícia brasileira, que envolve principalmente o assassinato de jovens negros e pobres, é um fato incostestável. Diante desse quadro, é consenso entre aqueles que querem reformas nas polícias que a formação, o treinamento dos policiais e as formas de controle sobre a polícia precisam ser repensados urgentemente. A proposta é de que as forças policiais vejam os destinatários dos serviços de segurança pública como cidadãos, independentemente da cor, sexo ou condição econômica. Para tanto, porém, é necessário abandonar-se a doutrina militarizada e o tratamento esteriotipado das polícias, que dividem a população de forma binária entre “bandido” e “cidadãos de bem”; “inimigo” e “aliado”. Neste novo modelo, a segurança pública seria sinônimo de prevenção e não de confronto com as pessoas. Também neste modelo, não haveria uma polícia militarizada em contato direto com a população.

Por isso, é de suma importância que se repense a polícia desde o início da formação policial, no sentido de se evitar que estes agentes públicos cometam violências, ou abusos, na atividade de controle do crime. É mais do que necessário que as polícias recebam uma instrução especializada, voltada para temas como: relações raciais, direitos sociais e políticos de populações excluídas, igualdade de gênero, respeito às populações LGBT.

A proposta é que a duração dessa formação se estenda para além do momento inicial, não se restringindo ao período em que policiais estão dentro das academias de polícia, ou seja, a polícia precisa ter uma formação ampliada, continuada e que vise a defesa dos Direitos Humanos. No entanto, também é importante lembrar que só é possível haver uma polícia realmente cidadã e democrática se os policiais tiveram garantidos direitos, condições de trabalho e salários dignos.

Da mesma forma, para que as polícias brasileiras se aproximem do modelo democrático de atuação, é necessário que ocorra um controle maior sobre estas instituições. Por mais que já existam alguns órgãos encarregados de tal incumbência, o que se observa nos dias de hoje é que estas instituições fiscalizadoras acabam endossando o atual modelo de atuação das polícias, marcado por violência e arbitrariedade.

 

Os órgãos de controle das polícias

 

As Corregedorias são órgãos de controle interno das polícias, responsáveis por apurar crimes e infrações administrativas cometidas por policiais. De forma geral, os órgãos de correção policial investigam as denúncias contra policiais, feitas por vítimas, testemunhas, comandantes, delegados, ou aquelas que são registradas nos Disque-Denúncia. Eles devem averiguar, igualmente, as denuncias encaminhas ao Ministério Público ou à Ouvidoria de Polícia. Tais denúncias podem ser relativas a infrações administrativas e disciplinares ou a delitos criminais. Após uma verificação preliminar, geralmente sigilosa, sobre a fundamentação da denúncia, pode ser instaurada uma sindicância – no caso de infrações administrativas e disciplinares – ou aberto um inquérito policial, quando se trata de conduta criminal.

A maior parte das denúncias é encaminhada pelas Corregedorias às unidades em que trabalham os policiais acusados. Depois de serem investigadas, elas retornam à Corregedoria, que analisará os resultados do procedimento. As penalidades aplicadas aos policiais denunciados podem ser concomitantes na esfera administrativa, disciplinar e criminal, sendo as duas primeiras atribuições da própria unidade policial, e a última de competência da Justiça comum ou militar.

Entretanto, constata-se que as Corregedorias dispõem de poucos recursos materiais, pessoal qualificado e autonomia para investigar denúncias contra os membros da própria polícia. Por este motivo, as propostas relacionadas à reforma das instituições policiais sugerem que instituições externas façam o controle da atividade policial, por exemplo, as Ouvidorias e o Ministério Público.

Segundo a Constituição Federal, dentre as atribuições do Ministério Público (MP) está a incumbência de realizar o controle externo da atividade policial, monitorando todos os estágios do trabalho policial, realizando o exame das investigações, assim como a denúncia de crimes e violações dos direitos dos cidadãos. Este órgão conta com estrutura funcional própria, além disso, não está subordinado ao Executivo e nem ao Judiciário. Por fim, como está incumbido de tarefas não apenas reativas – como o encaminhamento judicial de denúncias – mas também proativas – como o acompanhamento e a avaliação permanente da atividade policial – o Ministério Público constitui o órgão mais importante de controle externo da polícia legalmente previsto no Brasil.

Contudo, o que se percebe nos dias de hoje, é que o Ministério Público não consegue exercer o seu papel no controle externo da atividade policial e no combate à violação de direitos humanos. Essa dificuldade deve-se, especialmente a dois problemas que são apontados em relatório produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEAO IPEA é uma fundação pública federal, vinculada ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Desenvolve pesquisas que têm por objetivo fornecer suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação de políticas públicas e programas de desenvolvimento no país.   Ver mais em: http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&id=1226&Itemid=68, em  2015. Segundo o Instituto, entre as principais fontes desta limitação está, em primeiro lugar, o fato de que os promotores se limitam à revisão técnica das evidências apresentadas nos inquéritos, não fiscalizando outras etapas do trabalho policial. O segundo aspecto é a hostilidade das polícias ao controle externo exercido por instituições não policiais. Este problema é agravado por alegações de afronta à autoridade policial, que são garantidas pelo Código de Processo Penal, quando o MP realiza investigações de crimes cometidos por policiais, independentemente da atuação das Corregedorias.

Existem, ainda, as Ouvidorias de Polícia, criadas em diversos estados brasileiros ao longo dos anos 1990. As ouvidorias são mecanismos de controle externo das organizações policiais que assumiram em parte tais atribuições do MP. Entretanto, existem igualmente algumas dificuldades na atuação das Ouvidorias: as propostas de reforma da segurança pública têm apontado, por exemplo, que as ouvidorias brasileiras ainda se limitam ao trabalho de identificar e punir individualmente os crimes e abusos cometidos pelos agentes policiais, quando seria imprescindível que também se envolvessem no monitoramento mais amplo das instituições policiais e na formulação de soluções para seus problemas estruturais.

Em muitas das propostas de reforma do campo da segurança pública no Brasil insiste-se no argumento de que as alterações na segurança pública não devem se restringir à ação de colocar mais policiais nas ruas. Para se promover segurança é necessário pensar neste campo enquanto uma política pública, como ocorre com a Educação e a Saúde, por exemplo. Por isso, na segurança pública deve-se primar pela participação da sociedade civil e pela articulação desse campo com outras instâncias da gestão municipal (saúde, educação, esportes).

No entanto, é um grande desafio aos gestores do Brasil investir em políticas públicas para o campo da segurança com participação social. O desafio consiste em adequar a medida que o governo necessita se valer de forças repressivas, como a polícia, na segurança pública, mas equilibrando a sua atuação com um modelo cidadão de igualdade de direito na administração da justiça e na punição.

 

Reformas no ciclo da Polícia

 

A Constituição brasileira estabeleceu que nas unidades da federação, o ciclo do trabalho policial, seja dividido entre a PM e a Polícia Civil, com esta última sendo responsável, entre outras funções, pela investigação dos crimes, análise de provas periciais, só entrando “em ação” após o cometimento dos crimes. Por sua vez, a outra corporação policial, como se sabe, tem caráter militar, e é responsável pelo chamado “policiamento ostensivo”. Suas incumbências são prevenir a ocorrência de crimes por meio da presença física de policiais fardados, ou reprimir os crimes que possam vir a acontecer.

Este modelo de organização é pouco frequente em outros países. Comumente, predomina a constituição de corpos policiais que realizam o ciclo completo (policiamento ostensivo, investigativo e processamento criminal), ou existem divisões policiais com atribuições definidas, segundo o tipo de modalidade criminal ou a área de atuação.

As principais críticas ao atual modelo de polícia brasileiro dizem respeito a uma ruptura no fluxo de informações entre uma instituição que está permanentemente nas ruas – mas que é vedada de investigar – e outra que é responsável pela investigação dos crimes já cometidos, mas que não pode orientar ações preventivas contra crimes futuros. Esses problemas são agravados pelas rivalidades bastante intensas entre as duas corporações policiais, que prejudicam o compartilhamento de informações e trabalho de forma articulada.

Em relação a estes aspectos, a principal iniciativa de reforma está na proposta de que cada instituição policial seja responsável pelo ciclo completo de sua atividade. Além disso, a competência de cada polícia será redefinida por critérios territoriais, ou por especialização criminal, conforme decisão de cada estado. Contudo, não há consenso sobre qual reforma é desejável, havendo argumentos bastante contundentes tanto a favor quanto contra a instituição do ciclo completo no Brasil. O debate permanece!