Memórias da Ditadura

Música no Brasil da ditadura

A partir dos anos 1950, o Brasil passou por uma ebulição musical nunca antes vista, com um caldeirão de movimentos: bossa nova, jovem guarda, tropicalismo, música de protesto. Os festivais de música brasileira despertavam paixões no público, com vaias e aplausos calorosos. Mas, nos rebeldes anos 1960 e 1970, cantar virou atividade de risco, já que a censura baixava seu carimbo sobre aqueles que se insurgiam contra o regime.

Tempos agitados na música brasileira

“Qualquer solto som pode dar tudo errado”, alertou o letrista Paulo César Pinheiro no poema “Cautela”. “É um tempo de guerra, é um tempo sem sol”, cantava Maria Bethânia na canção de Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri. Nos rebeldes anos 1960 e 1970, cantar virou atividade de risco. Compor, mais ainda. A censura baixava seu carimbo sobre aqueles que insurgiam contra o regime, elaborando metáforas para combater a linha dura, a censura e outras torturas.

O protesto — palavra ampla, geral e irrestrita — trocava de categoria à medida que as causas mudavam. Protestava-se contra a repressão e contra a censura. Contra a guitarra elétrica — para a esquerda, um símbolo da traição do nacionalismo musical — ou a favor dela. Por Deus, com Deus ou contra Deus. Protestava-se também pelo direito a tomar uma coca-cola e pensar em casamento, saber da piscina e da margarina.

Tempos de Chico Buarque e Odair José. Os Mutantes e Os Incríveis. Dom & Ravel e Simonal. Roberto, e Elis, e Caetano, e Bethânia, e Taiguara, e Nara e Raul. Entre 1º de abril de 1964 e 15 de março de 1985, quando o primeiro presidente civil tomou posse, após 21 anos de governo fardado, vimos minguar o amor, sumir o sorriso e murchar a flor cultivada com bossa nova e sua crença na modernidade e na leveza de espírito. Envelhecemos com a jovem guarda. Devoramos a geleia geral da Tropicália e flertamos com a psicodelia lisérgica de um rock mutante, enquanto víamos assentar a sombra sonora de um disco voador. Barato total. Ai que vida boa, olerê.

Desse caldeirão sonoro, brotou a MPB, sigla que se traduz em uma música popular fundamentalmente eclética e socialmente reconhecida como “de qualidade”. Nunca se aplaudiu um artista como naquela época; mas também nunca se vaiou um artista como naquela época. Entre violões quebrados e esperanças equilibristas, recuperamos a voz e a liberdade. Ficaram as grandes canções para serem ouvidas, apreciadas e compreendidas.

A era dos festivais

Engajamento musical

Até meados dos anos 1960, o brasileiro orgulhava-se de produzir e consumir música de qualidade, inclusive para exportação. Especialmente após a consagração da bossa nova e o surgimento de seu principal oponente, a jovem guarda, nos primeiros anos da década. Alegrava-se ao ver o cancioneiro nacional competindo em pé de igualdade, na programação das rádios, com o repertório estrangeiro.

Além de orgulho e alegria, a música brasileira despertava sensações autênticas de patriotismo e pertencimento. Como se via na identificação de determinado repertório com seu público típico, frequentemente caracterizado como “turma” ou “tribo”: a juventude do banquinho e violão de um lado, a moçada do iê-iê-iê do outro.

A novidade, na metade daquela década, foi o aparecimento de uma nova forma de se posicionar diante da música. Ao habitual sentido de pertencimento proporcionado pelos diferentes ritmos, pelas diferentes “turmas”, somou-se um engajamento inédito. Era uma disposição generalizada de fãs e ouvintes em defender, com urros e vaias, suas canções preferidas, seus artistas prediletos, seus ídolos musicais.

Mais do que o momento político ou a violência policial que solapava o Brasil, o responsável por transformar a música popular em objeto de disputa e de calorosa torcida foi o modelo de espetáculos competitivos, criado em 1965 na TV Excelsior, que manteve a hegemonia da produção fonográfica brasileira até 1972: os festivais de música popular brasileira.

Os festivais se firmaram como os maiores celeiros de músicas de vanguarda do Brasil. Foi por meio deles que despontaram artistas como Elis Regina e Edu Lobo (1965), Geraldo Vandré e Jair Rodrigues (1966), Gilberto Gil, Caetano Veloso, MPB 4, Milton Nascimento, Sidney Miller e Os Mutantes (1967), Gal Costa e Beth Carvalho (1968), Ivan Lins e Gonzaguinha (1970), entre outros. Em especial, por meio do Festival da Música Popular Brasileira, criado para a TV Excelsior e, a partir do segundo ano, produzido e exibido pela TV Record, e também do Festival Internacional da Canção Popular, o FIC, transmitido na TV Rio e mais tarde na TV Globo. Entre 1965 e 1975, outros festivais se espalharam pelo Brasil, como a Bienal do Samba, de 1968, e uma dúzia de festivais universitários, ao longo dos anos 1970.

1º Festival Nacional de Música Popular Brasileira (TV Excelsior)

O produtor que idealizou os festivais da canção na TV brasileira, Solano Ribeiro, considerava que, todo ano, as rádios e gravadoras inundavam o mercado com os artistas e as músicas que tinham se destacado no Festival de Sanremo, na Itália, consideradas por ele uma “baboseira melosa”. Após o sucesso dos primeiros programas de TV voltados para a música, em especial Brasil 60, exibido na TV Excelsior e produzido pelo futuro autor de novelas Manoel Carlos, Solano Ribeiro achou que era o momento de criar um festival brasileiro.

Definiu o júri: os poetas concretistas Augusto de Campos e Décio Pignatari, o maestro Damiano Cozzella e o músico Amilton Godoy, do Zimbo Trio. Estabeleceu que a sede do festival seria o Guarujá, no litoral de São Paulo, onde o evento viraria assunto único durante semanas e poderia ser beneficiado pela aura de isolamento que já favorecia, na sua opinião, os festivais de Sanremo e de Cannes, na França. E conseguiu um patrocínio do braço têxtil da Rhodia, multinacional de origem francesa que, na época, investia pesado em desfiles de moda com as principais modelos do Brasil.

Por interferência da Rhodia, foi preciso alterar os planos. Como cada eliminatória seria precedida por um desfile de moda organizado pela marca, interessava à Rhodia levar o festival para outras praças, incluindo capitais. Assim, optou-se por um formato itinerante, com eliminatórias no Guarujá (a primeira, em atenção a Solano), em São Paulo (no auditório da TV Excelsior), e em Petrópolis (no Hotel Quitandinha). A final aconteceria na noite de 6 de abril de 1965, no auditório da TV Excelsior, no Rio de Janeiro.

Entre as 1.290 canções inscritas, seriam garimpadas pelo júri 36 para as três eliminatórias, 12 canções por noite. A grande final consagrou “Arrastão“, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, numa irrepreensível interpretação de Elis Regina. A cantora então era uma menina de 19 anos recém-chegada de Porto Alegre, que ainda foi premiada com o troféu Berimbau de Ouro de melhor intérprete.

“Arrastão” reunia os principais elementos que viriam a caracterizar as canções de festival e transformá-las quase num gênero musical específico. Como se comprovaria ao longo dos anos seguintes, a canção bem sucedida precisava ter uma letra que transmitisse alguma mensagem sociocultural ou política; uma mensagem capaz de seduzir os ouvintes e transformá-los em torcedores. Uma melodia capaz de ser assimilada e acompanhada em coro pela plateia, ou que pelo menos a empolgasse. Um arranjo contagiante e surpreendente, apoiado em “sacadas” de efeito como alterações no tempo, no andamento ou na instrumentação, que levantasse a plateia, a ponto de arrancar aplausos ou gritos histéricos no meio de sua execução. E, finalmente, uma interpretação peculiar, teatral, que evidenciasse o carisma do intérprete e sua empatia com o público.

Tudo isso estava sintetizado em “Arrastão”. A realidade de uma comunidade de pescadores sob a ótica poética e engajada de Vinícius de Moraes. A influência de Caymmi no híbrido de samba e marcha-rancho com inspiração jazzística de Edu Lobo. O arranjo virtuoso que combinava o suspense da primeira parte (“Ê, tem jangada no mar/ ê, hoje tem arrastão…”), com o lirismo da segunda (“Minha Santa Bárbara/ me abençoais…”), para culminar na desdobrada vibrante do compasso na entrada da segunda execução do refrão (“Pra mim/ valha-me Deus, Nosso Senhor do Bonfim…”). E, finalmente, a presença cênica da Pimentinha, instruída pelo bailarino Lennie Dale a agitar os braços para trás. Já no dia seguinte ao show, essa atuação lhe rendeu na imprensa o apelido de “Hélice Regina”, numa referência ao movimento de hélice que seus braços pareciam fazer. O sucesso de Elis fez com que a TV Record a contratasse, para apresentar o programa O Fino da Bossa, tornando-a a artista mais bem paga da TV brasileira.

Naquele ano de 1966, enquanto a TV Excelsior fazia seu segundo e último festival, quase sem repercussão — e caminhava a passos rápidos para a falência, consumada em 1970 — a Record promovia a consagração do formato e o levava a um nível inédito de profissionalismo e repercussão. Conhecidos simplesmente como “Festivais da Record”, eles marcariam época na TV, fazendo com que, ainda em 1966, a audiência do canal batesse a da Excelsior e a da Tupi, e ajudariam a instituir o gênero MPB, expressão não usada até então.

Festivais da Record

Em apenas quatro edições, de 1966 a 1969, os Festivais da Record transformaram a música brasileira e cristalizaram dois dos gêneros musicais mais relevantes do século XX: as canções de protesto e o tropicalismo. Também desempenharam um papel sem precedentes na modernização da música popular brasileira. Ajudaram no processo de superação de rusgas anacrônicas como a campanha contra o uso de guitarras elétricas, empreendida até 1968 por setores da sociedade, e contribuíram para a valorização dos diferentes aspectos constitutivos da canção, da letra à melodia, do arranjo à interpretação.

As duas primeiras edições foram especialmente revolucionárias. A primeira, em 1966, recebeu 2.635 inscrições e promoveu pelo menos dois monstros sagrados da MPB: o cantor Jair Rodrigues e o compositor Geraldo Vandré. “Disparada“, música de Vandré e Théo de Barros defendida por Jair, dividiu o primeiro prêmio com “A Banda“, marchinha de Chico Buarque interpretada por Nara Leão. Sua letra viril e emocionante, acoplada a uma harmonia com raízes sertanejas executada com perfeição pelo Quarteto Novo (num arranjo regional que incluía até o uso de uma queixada de burro), envolveu o público de tal maneira que até Chico Buarque, o adversário, passou a defendê-la.

No dia da grande final, a imprensa noticiava a polarização entre as duas favoritas. Segundo uma piada corrente na época, o Brasil se dividia entre duas espécies: os bandidos e os disparatados, em referência aos títulos das duas canções. E Chico, para desespero da produção, fez circular pelos bastidores o aviso de que não receberia o prêmio sozinho. “A Banda” tinha suas qualidades, mas “Disparada” era superior, ele dizia.

Muitos anos depois, Zuza Homem de Mello, técnico de som do Teatro Record em 1966, revelaria no livro “A Era dos Festivais” (2003) que de fato “A Banda” recebeu do júri uma pontuação maior do que “Disparada”, a vice, obrigando seus membros a jogar o resultado no lixo para anunciar o empate. Uma marmelada histórica, confirmada pelos envelopes com os votos dos jurados que, ao final da noite, lhe foram confiados por Paulinho Machado de Carvalho, o diretor da emissora, para que Zuza os guardasse em sua casa.

O 3º Festival da Record, por sua vez, é considerado o melhor de todos os festivais pela maioria dos críticos e pesquisadores. A canção vencedora foi “Ponteio“, uma feliz parceria de Edu Lobo e Capinan, cantada por Edu e Marília Medalha, com instrumentação do mesmo Quarteto Novo, consagrado com “Disparada” no ano anterior. No entanto, a maior novidade do festival de 1967 foi levar ao palco as primeiras fagulhas do que viria a se tornar o movimento tropicalista. “Alegria, Alegria“, de Caetano Veloso, e “Domingo no Parque“, de Gilberto Gil, foram as duas canções mais surpreendentes daquela edição, e concentravam o que havia de mais revolucionário na proposta ética e estética defendida pela turma tropicalista. O movimento em si seria deflagrado oficialmente no ano seguinte, com a canção “Tropicália”, gravada no LP de Caetano, e principalmente com o álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, que reuniu, além dos dois compositores baianos, Nara Leão, Tom Zé, Torquato Neto, Capinan, Gal Costa e Os Mutantes.

Tanto Caetano quanto Gil, no festival de 1967, subiram ao palco acompanhados por grupos de rock, devidamente armados com guitarras elétricas, prontos para serem vaiados pela patrulha antiamericanismos. O ousado arranjo feito por Rogério Duprat para “Domingo no Parque”, executado pelo grupo Os Mutantes, combinava instrumentos elétricos com ruídos que buscavam sintetizar os sons característicos de um parque de diversões. Já “Alegria, Alegria”, com arranjo de Júlio Medaglia, adquiria a forma de uma marcha-rancho modernizada pela visionária instrumentação de um grupo de rock formado por argentinos radicados em São Paulo, os Beat Boys, cabeludos e essencialmente influenciados pelos Beatles.

“Domingo no Parque” conquistou o segundo lugar, enquanto “Alegria, Alegria”, que começou sob vaias e terminou sob aplausos, faturou o quarto. O terceiro lugar ficou com “Roda Viva“, de Chico Buarque, num sofisticado arranjo feito e interpretado pelo MPB 4. “A gente quer ter voz ativa/ no nosso destino mandar”, dizia a mais politizada das canções premiadas naquele ano, sete meses após a ditadura criar a Lei de Segurança Nacional, que, entre outras disposições, proibia “insurreições” e “atividades subversivas”.

O festival de 1967 teve outros momentos marcantes, como a presença de um deslocado Roberto Carlos, ou o histórico chilique de Sérgio Ricardo, que quebrou o violão e o arremessou contra a plateia ao ser vaiado enquanto tentava cantar a fraca “Beto Bom de Bola“. O mais competitivo de todos os festivais teve ainda Elis Regina, ganhadora do prêmio de melhor intérprete, defendendo a bela “O Cantador“, de Dori Caymmi e Nelson Motta; Johnny Alf com sua “Eu e a Brisa”; e Sidney Miller, vencedor do prêmio de melhor letra, cantando com Nara Leão a lírica “A Estrada e o Violeiro”, entre outros sucessos menos pontuados. Pelo menos uma injustiça seria cometida pelo júri naquela edição: dispensada ainda na fase classificatória, “Máscara Negra”, de Zé Kéti, não chegou a ser apresentada numa eliminatória, mas se tornou o maior hit do carnaval do ano seguinte.

Em 1968, dividindo espaço com o Festival Internacional da Canção, da TV Globo, que vinha galgando importância até superar a audiência e a relevância do festival promovido pela emissora paulista, o Festival da Record voltou a emplacar canções tropicalistas no top 5. A campeã foi “São, São Paulo, Meu Amor“, assinada e defendida por Tom Zé, a despeito de a maioria dos críticos hoje a considerar aquém da genialidade do inventivo compositor. “Divino, Maravilhoso“, de Gil e Caetano, ficou em terceiro lugar e alçou a intérprete Gal Costa ao estrelato, rendendo à turma da Tropicália um programa homônimo na emissora. Finalmente, a moda caipira-psicodélica “2001“, outra de Tom Zé, agora em parceria com Rita Lee, abocanhou o quarto lugar, defendida pelo grupo Os Mutantes. Edu Lobo e Chico Buarque voltaram a emplacar canções entre as preferidas do júri, e Sérgio Ricardo, desclassificado no ano anterior, figurou em quinto lugar.

A história dos Festivais da Record terminaria em 1969, com um prêmio de melhor letra para “Moleque”, do novato Gonzaguinha, e a vitória de “Sinal Fechado“, de Paulinho da Viola, defendida por ele mesmo. Diferente dos sambas que o tornaram conhecido, dessa vez Paulinho emplacou uma canção diferente, estranha e genial, com uma cadência truncada, cheia de breques e silêncios, que reforçavam o clima de aflição e abismo sugerido pela letra. “Sinal Fechado” ficaria especialmente famosa na interpretação de Chico Buarque, no disco homônimo de 1974.

Festival Internacional da Canção Popular (FIC)

O mais longevo dos festivais custou a engrenar. Lançado em 1966 por iniciativa da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara, governado por Negrão de Lima, o Festival Internacional da Canção Popular (FIC), transmitido pela TV Rio, no primeiro ano, e pela TV Globo a partir do ano seguinte, totalizou sete edições, até 1972. Mas foi apenas em 1968 que ele provocou o barulho esperado.

O evento foi idealizado por Augusto Marzagão, um ex-seminarista e ex-repórter policial convertido em assessor político. Marzagão disse ao governador eleito da Guanabara, Negrão de Lima, que gostaria de organizar um festival de música que fosse internacional, o que o diferenciaria das versões realizadas naquele mesmo ano pela TV Excelsior e pela TV Record. Um festival que contribuísse para promover o Rio de Janeiro no exterior. Foi autorizado a apresentar um orçamento e a fechar parceria como uma emissora de TV.

Walter Clark, diretor da Globo, não demonstrou interesse. Erlon Chaves, diretor musical da TV Rio, foi mais receptivo. Negócio fechado, o retorno ficaria bem acima das expectativas da emissora, que contabilizou nada menos que 45 pontos de audiência na primeira eliminatória e terminaria a noite da grande final nacional com 62% dos aparelhos sintonizados nela, marca que saltou para 72% na final internacional.

O sistema proposto por Marzagão consistia em duas etapas sobrepostas. A etapa nacional premiaria três canções após duas eliminatórias e uma final. A grande vencedora representaria o Brasil na segunda etapa, internacional, concorrendo com composições de diversos países. O cenário escolhido foi o Maracanãzinho, alvo de muitas críticas por parte de cantores, músicos, jurados e jornalistas, uma vez que não houve técnico capaz de salvar a péssima acústica do ginásio.

O repertório era outro ponto fraco. Tachado de “triste” e “lento demais” pela crítica especializada, não convenceu o público, treinado pelos festivais anteriores, tanto o da Excelsior e quanto o da Record, a esperar músicas mais envolventes e vibrantes. Das 28 canções selecionadas para serem defendidas nas duas eliminatórias consecutivas, 14 por noite, duas despontaram como as de maior qualidade segundo a crítica: “Saveiros“, de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi, e “Canto Triste”, que era triste até no título, composta por Edu Lobo e defendida por Elis Regina.

Classificadas para a final, “Saveiros” foi anunciada como campeã, enquanto “Canto Triste” não foi selecionada entre as três primeiras. O público protestou. Embora não seja possível apontar a canção favorita do público, foi sob vaias que a multidão acompanhou a apresentação de Nana após o anúncio. Deu-se ali, naquele dia, o início de uma tradição que marcaria a história dos festivais: vaiar as canções que não contavam com sua torcida.

A segunda edição continuou morna. Com apoio e coprodução da TV Globo, para a qual o diretor geral Walter Clark havia contratado Boni para a função de diretor artístico, agora seriam dez as canções premiadas. O palco foi reformulado, graças a um investimento monumental da emissora, para tentar sanar os problemas de acústica, que jamais sumiriam por completo.

Mais uma vez, os shows não entusiasmaram nem os convidados estrangeiros, nem os jurados, nem o público. Enquanto o Festival da Record pegava fogo em São Paulo, misturando letras engajadas com excentricidades estéticas, confirmando-se como palco máximo do inconformismo, da manifestação e da vanguarda da música brasileira, o repertório do festival do Rio continuava apartado do estilo dos festivais. Apesar de toda a grandiosidade do FIC, sua programação era baseada em canções bem comportadas, que não se comprometiam nem compravam briga, incapazes de levantar a plateia.

O mérito daquela edição foi o de apontar holofotes para o jovem Milton Nascimento, que classificou três composições, todas inscritas à sua revelia por Agostinho dos Santos. O compositor, encantado com a música daquele rapaz, que atuava como crooner em boates de São Paulo, fez de tudo para convencê-lo a se inscrever no FIC. Diante da negativa do compositor, tímido demais para encarar um festival, inventou uma desculpa para gravar as fitas e as encaminhou à organização. Resultado: Milton emplacou “Travessia” em segundo lugar e “Morro Velho” em sétimo na final da etapa nacional.

Embora a campeã tenha sido “Margarida“, de Gutemberg Guarabira, que mais tarde formaria um trio com Sá e Zé Rodrix, aquela edição entraria para a história da MPB como o festival de “Travessia”, a única grande novidade da temporada. O terceiro lugar fico com “Carolina“, do infalível Chico Buarque, defendida por Cynara e Cybele.

A guinada do FIC viria em 1968, com a radicalização das torcidas e a consagração do evento. Pela primeira vez, o festival da TV Globo superou em tamanho, divulgação e legitimidade o festival da TV Record, emissora que começava a dar sinais de declínio, em grande parte gerado por erros de gestão e esgotamento de um modelo.

Dessa vez, haveria uma etapa paulista, realizada no Tuca, o Teatro da Universidade Católica (PUC), que precederia a fase nacional. Com a intenção de disputar o mercado paulista, dominado pela Record, e abrir espaço para as vibrantes canções tradicionalmente exibidas em São Paulo, definiu-se que oito finalistas sairiam dessa primeira etapa.

Na final paulista, a primeira surpresa. Hostilizado pela plateia ao subir ao palco com roupas e assessórios de plástico colorido para cantar “É Proibido Proibir“, acompanhado pelo grupo Os Mutantes, Caetano Veloso, que tinha saído aplaudido do Festival da Record no ano anterior, rebateu as vaias com um discurso ferino e inspiradíssimo. Um happening inigualável, uma bronca pública contra uma claque de jovens intolerantes que, na teoria, defendiam a democracia e a liberdade de expressão. A atitude era compreensível no contexto da época. Os universitários cobravam de Gil e Caetano um posicionamento claro contra os militares, e se irritavam com a opção deles por assumir bandeiras consideradas menos relevantes, como a defesa das guitarras, dos cabelos compridos, da liberdade sexual.

Eram tempos de ânimos exaltados, e a polarização só faria aumentar. Embora classificado, Caetano decidiu não participar da final nacional no Rio de Janeiro, duas semanas depois. Ali, as vaias se voltaram contra a canção “Sabiá“, de Tom Jobim e Chico Buarque. Apenas Tom estava presente ao estádio, e saiu massacrado. À medida que os apresentadores anunciavam as dez premiadas, o público ia tirando suas conclusões. A multidão já suspeitava, pela repercussão que tiveram, que os dois primeiros lugares ficariam entre “Sabiá” e “Pra Não Dizer Que Não Falei De Flores“, de Geraldo Vandré, também conhecida como “Caminhando”. Bastou que a canção de Vandré fosse confirmada na vice-liderança para que a multidão viesse abaixo, inconformada.

A canção de Vandré tinha se tornado um hino não apenas do movimento estudantil, mas também daqueles que se encaminhavam para a resistência armada, uma constante às vésperas do AI-5. “Há soldados armados, amados ou não/ Quase todos perdidos de armas na mão/ Nos quartéis lhes ensinam antiga lição/ De morrer pela pátria e viver sem razão”, diz a letra. Em contrapartida, “Sabiá” era uma romântica canção do exílio, feita à maneira das modinhas de Villa Lobos, com muito mais densidade harmônica do que a canção de Vandré, com apenas dois acordes. Isso era o que menos interessava à juventude presente ao ginásio. Para a maioria, o momento político exigia coragem e posicionamento. E Vandré, muito mais do que Chico e Tom, era o porta-voz daquela proposta estética e política.

À vontade no papel de vítima, Vandré pediu à plateia que relevasse a decisão do júri, lembrando que as vaias, se justas, deveriam ser direcionadas aos jurados, e não aos compositores da outra canção. Enfim, cantou. Quando foi a vez de Cynara e Cybele subirem ao palco, acompanhadas por um Tom Jobim atônito, em sua primeira e última participação num festival, Vandré permaneceu no palco, numa tentativa de aplacar os ânimos. Não houve trégua. Cynara e Cybele choravam enquanto repetiam a canção, sem se fazerem ouvir.

Na semana seguinte, na final internacional, a recepção já foi bem mais educada. Campeã também dessa fase, algo inédito até aquela edição, “Sabiá” pôde ser apresentada sem mais contratempos. Chico e Tom puderem receber o prêmio numa boa. Duas semanas após o término do festival, veio a ordem inevitável: “Caminhando” foi proibida pelo governo federal de ser executada em rádios e locais públicos.

Outras edições se seguiram, culminando no 7º FIC, de 1972, com direção de Solano Ribeiro, o pai do formato, contratado pela Globo para substituir Marzagão. Duas grandes novidades vinham do mundo do rock: Raul Seixas, ainda desconhecido, classificou o rock-baião “Let me Sing, Let me Sing“, enquanto Sérgio Sampaio, outro estreante,apresentou aquele que viria a ser o maior sucesso de sua carreira: “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua“. Maria Alcina foi a grande revelação em interpretação, defendendo “Fio Maravilha“, de Jorge Ben. Os intelectuais chegaram a fazer até manifesto a favor de “Cabeça“, música experimental de Walter Franco. Alceu Valença, Fagner, Belchior, Ednardo, Baden Powell e até um jovem compositor de 16 anos chamado Oswaldo Montenegro estavam entre os selecionados.

Dessa vez, a disputa nos bastidores foi ainda mais intensa do que diante das câmeras. De todos os tumultos, o episódio mais grave foi quando os militares entraram em contato com Walter Clark e pediram a cabeça de Nara Leão, presidenta do júri. Dias antes, ela havia criticado a ditadura numa entrevista ao Jornal do Brasil. O diretor-geral da Globo chamou Solano e deu ordens para que a demitisse. Solano ameaçou se demitir também, ciente do absurdo que seria cortá-la àquela altura, após a realização das eliminatórias.

Finalmente, optou-se por destituir o júri inteiro, numa tentativa de encontrar uma justificativa capaz de aplacar um eventual rebuliço na opinião pública. Um novo júri seria formado para a final, que confirmaria as duas vencedoras, alçadas automaticamente à final internacional: “Diálogo“, composição de Baden Powell e Paulo César Pinheiro defendida por Baden, Cláudia Regina e Tobias, e “Fio Maravilha”.

O 7º FIC terminou com baixa audiência, um público modesto (a média de 5 mil pessoas por noite estava muito aquém da esperada), críticas disparadas por toda a imprensa e um prejuízo estimado em 400 mil dólares. Em maio do ano seguinte, a Globo anunciou que o FIC não seria mais realizado, alegando falta de interesse dos patrocinadores.

Naquele momento, a música brasileira e também a televisão já viviam outro momento. Os programas musicais já não exerciam o mesmo fascínio de meados da década anterior, já não puxavam a audiência dos canais nem cumpriam com o mesmo rigor o papel de revelar as novidades do mercado fonográfico, transferido gradativamente aos programas de auditório. Ao mesmo tempo, já em 1969, os acontecimentos pós-AI-5 tinham resultado numa diáspora dos mais importantes músicos de festival: Chico, Gil, Caetano e Vandré foram exilados, enquanto Elis afirmava publicamente que não renovaria contrato com a Record se uma cláusula a obrigasse a cantar em festivais.

A era dos festivais chegava ao fim, e todos os eventos desse tipo lançados posteriormente já não tiveram o mesmo impacto. Os grandes festivais ficaram na memória, ao mesmo tempo símbolos de utopia política e lugar da nostalgia cultural.

Músicas que marcaram a era dos festivais

Arrastão
(Edu Lobo e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: Elis Regina

Inspirada nas experiências de Vinícius com os afro-sambas e em parcerias anteriores do jovem Edu Lobo com o cineasta Ruy Guerra, como “Reza” e “Aleluia”, essa canção de pescador com harmonia sofisticada, envolta num arranjo que em muito lembrava a alternância das marés entre calmarias e ressacas, venceu o 1º Festival da TV Excelsior, em 1965, defendida por Elis Regina.
Onde ouvir:

A Banda
(Chico Buarque)
Principal intérprete: Nara Leão

Na final do Festival da Record de 1966, duas torcidas dominavam a plateia e as enquetes. Metade queria a vitória de “Disparada”, a toada sertaneja de Théo de Barros e Geraldo Vandré, enquanto a outra metade torcia para “A Banda”. Nos bastidores, o próprio Chico Buarque reconhecia o superioridade da canção adversária e avisava aos organizadores: se ele ganhasse sozinho, não receberia o troféu. Sob pressão, o júri, que havia escolhido justamente a canção de Chico, declarou empate entre ela e “Disparada”. Embora “A Banda” tivesse suas qualidades, a canção de Vandré, defendida por Jair Rodrigues, era mais “música de festival”.
Onde ouvir:

Disparada

(Théo de Barros e Geraldo Vandré)
Principal intérprete: Jair Rodrigues

Melhor composição inscrita no 2º Festival da Record, de 1966, ficou atrás de “A Banda” na contagem geral dos votos, mas terminou empatada com ela na liderança por imposição de Chico Buarque, que se negava a ganhar sozinho, reconhecendo a superioridade da música de Théo de Barros e Geraldo Vandré. A toada de inspiração sertaneja combinava o carisma de uma história épica — a do boiadeiro que se indignava com a maneira com que gado e empregados são tratados — com a calorosa interpretação de Jair Rodrigues. Jair por pouco não foi preterido por Vandré, que não queria ver sua canção séria defendida por um sambista engraçado, que fazia tantas estripulias no palco do Fino da Bossa.
Onde ouvir:

Roda Viva
(Chico Buarque)
Principal intérprete: Chico Buarque

A canção foi composta por Chico Buarque para a trilha sonora da peça Roda Viva, escrita em 1967 para ser montada no ano seguinte pelo Teatro Oficina, com direção de Zé Celso. Chico, que naquela época era acompanhado em quase todos os shows pelo conjunto vocal MPB 4, fundado no anterior em Niterói, deixou a partitura com Magro, um dos membros do grupo, e foi viajar. Quando voltou, deu de cara com o arranjo feito por Magro, ideal para disputar um festival. Defendida pelo autor com vocais do MPB 4, a música despertou a atenção da plateia, cativada pelas mudanças de ritmo e pela catártica acelerada final, e ficou em terceiro lugar na TV Record.
Onde ouvir:

Ponteio
(Edu Lobo e Capinan)
Principal intérprete: Edu Lobo e Marília Medalha

Edu Lobo fora chamado por Dori Caymmi para fazer a letra da música “O Cantador”. Semanas depois, compôs o refrão: “Quem me dera agora eu tivesse a viola pra cantar”. Quando procurou o amigo para mostrar, Dori, meio constrangido, contou que Nelson Motta estava trabalhando na letra. Edu não se importou, mas concluiu o tema, concentrando-se na harmonia, e encomendou os versos a Capinan. Para defendê-la no Festival da Record de 1967, uniram-se as vozes de Edu Lobo e Marília Medalha. Resultado: “O Cantador” não pontuou entre as seis primeiras, embora garantisse a Elis Regina o troféu de melhor intérprete. Já “Ponteio”, com seu arranjo contemporâneo repleto de referências regionais, à maneira de “Disparada”, sagrou-se campeã, à frente das competitivas canções de Gilberto Gil (“Domingo no Parque”), Chico Buarque (“Roda Viva”) e Caetano Veloso (“Alegria, Alegria”).
Onde ouvir:

Sabiá
(Tom Jobim e Chico Buarque)
Principal intérprete: Tom Jobim

A canção foi defendida por Cynara e Cybele, do conjunto Quarteto em Cy, no Festival Internacional da Canção de 1968. Embora a torcida clamasse pela vitória do hino estudantil “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, “Sabiá” sagrou-se vencedora, escolhida pelo júri, diante do Maracanãzinho lotado.
Onde ouvir:

Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores
(Geraldo Vandré)
Principal intérprete: Geraldo Vandré

Assim que foi anunciado o veredicto do júri do Festival Internacional da Canção de 1968, no Rio, o público que lotava o Maracanãzinho se pôs a vaiar a vencedora, “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. A maior parte da plateia torcia pela vitória desta que é considerada a mais emblemática canção de protesto lançada durante a ditadura militar, com seu irrepreensível refrão “Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”.
Onde ouvir:

Da MPM à MPB

Foi na segunda metade da década de 1960 que se edificaram os alicerces daquilo que passaríamos a conhecer como MPB, ou Música Popular Brasileira. É evidente que todos os estilos anteriores, do samba à bossa nova, do forró ao baião, da marcha à modinha, também devem ser considerados formas diversas de música popular brasileira. Mas foi a partir desse mesmo período, caracterizado pela profusão de festivais e pela sucessão de movimentos, que a sigla MPB adquiriu significado, absorvendo sob seu guarda-chuva uma variedade enorme de ritmos e subgêneros.

Herdeira de uma tradição que começou justamente com a bossa nova, a MPB precisou percorrer todo o périplo de movimentos e momentos musicais dessa época, incorporando lampejos diversos da ideologia e da estética de cada um, para se firmar como marca. Uma marca surpreendentemente coerente, por mais diversa que seja, onipresente e ubíqua como nenhuma outra.

A primeira versão da MPB foi a MPM, sigla de Música Popular Moderna, usada pela primeira vez em 1965, para identificar canções que pareciam representar um gênero impreciso. Um gênero que, embora não rompesse com a bossa nova, já não se alinhava com os dogmas sagrados da música feita por João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Uma música nova, moderna como explicitava a sigla, que não era samba nem moda ou marchinha, mas parecia aproveitar ao mesmo tempo a suavidade do repertório da bossa nova, o carisma das tradições regionais e o cosmopolitismo de canções americanas, desembarcadas no Brasil por meio dos filmes de Hollywood.

Um dos primeiros exemplos de canção rotulada como MPM foi “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, já em 1965, ano em que venceu o 1º Festival da Excelsior. Quando Chico Buarque despontou com o samba “Pedro Pedreiro”, em 1966, tascaram-lhe também o selo de MPM: aquilo já não era bossa nova, mas também não era jovem guarda, nem música de protesto.

Naquele mesmo ano, quando um conjunto vocal de Niterói, conhecido como Quarteto do CPC, escolheu o nome MPB 4 para dar seguimento à carreira após a extinção dos CPCs, o colunista Sérgio Porto, conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, escreveu que o nome parecia prefixo de trem da Central do Brasil. Ou seja: o MPB 4 precedeu a MPB.

Aos poucos, na virada da década de 1960 para a de 1970, a MPM foi desaparecendo e cedendo espaço para a MPB. O conjunto de autores e cantores adeptos desse filão era cada vez maior, incorporava as grandes revelações dos festivais e também compositores de música de protesto. Vale lembrar que tanto nos festivais quanto na música de protesto os gêneros eram variados e, não era raro, misturavam-se e combinavam-se.

As múltiplas possibilidades de associação e de inspiração promoveram um caldeirão rítmico sem precedentes na década de 1970, transformando a MPB num rótulo hegemônico. Artistas plurais, como Elis, Chico ou Caetano, já não precisavam se alinhar com um único movimento, acostumando-se a misturar tendências e estilos num mesmo disco. Virou praxe nos álbuns da MPB a primeira faixa ser um samba, a segunda uma toada romântica e alienada, a terceira uma canção de protesto em ritmo de marujada, e assim por diante.

Agora, quem fazia bossa nova também podia se aventurar no iê-iê-iê, na Tropicália, no samba, na canção engajada, no rock, na música regional. Punha-se berimbau numa música, guitarra na outra, sanfona na terceira, e estava tudo lindo, tudo certo como dois e dois são cinco. Tomando-se como exemplos os dois discos lançados por Elis entre 1976 e 1977, nota-se uma versatilidade musical tão intensa que apenas o rótulo de MPB seria capaz de defini-los. Nesses trabalhos, a cantora registrou o rock “Velha Roupa Colorida”, de Belchior, os boleros “Fascinação”, de Lousada, e “Tatuagem”, de Chico, a canção de protesto chilena “Gracias a la Vida”, de Violeta Parra, e ainda emplacou a caipira “Romaria”, de Renato Teixeira.

Além de Elis Regina, também bastante identificada com a Era dos Festivais, surgem como representantes importantes dessa MPB avessa a rótulos alguns artistas menos lembrados como signatários de movimentos específicos do que pela amplitude de sua obra. Maria Bethânia talvez seja a maior representante dessa independência musical. Alheia a movimentos, nem mesmo ao tropicalismo, liderado pelo irmão mais velho, Bethânia aceitou se vincular.

Outros fenômenos da MPB foram os cearenses Belchior e Fagner, os Novos Baianos, Gonzaguinha, Ivan Lins. Também o competente Milton Nascimento, em especial em sua fase pós-Clube da Esquina, que, por sua complexidade sonora, transitando com desenvoltura entre o rock, a música regional e a nova canção latina, não poderia ser compreendido de outra forma senão como um conjunto de MPB.

Importante lembrar que a música popular brasileira ao longo de todos esses anos fez muito mais do que entreter ou embalar o cotidiano dos brasileiros. As músicas estiveram enraizadas em cada conflito, em cada tensão social, em cada momento histórico, cantadas nas ruas, assoviadas nas praças, sussurradas nas catacumbas, publicadas em jornais da resistência. “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” virou hino da geração de 1968. Tanto o título da canção “Apesar de você” quanto seu verso “Amanhã será outro dia” aparecem gravados em faixas empunhadas em passeatas no início dos anos 1970.

“Cálice”, vetada em 1973, ainda na condição de obra inédita, teve sua letra divulgada na mesma semana no Jornal da Tarde e em jornais universitários, sendo exibida publicamente num show de Gilberto Gil, na USP, num gesto de desobediência civil, apenas duas semanas após o assassinato do estudante Alexandre Vannucchi Leme nos porões do DOI-Codi. Anos antes, em 1968, a morte de Edson Luís no restaurante universitário do Calabouço, um centro de convivência estudantil carioca, já havia inspirado Sérgio Ricardo a compor “Calabouço”.

Em “O bêbado e a equilibrista”, João Bosco e Aldir Blanc não apenas homenageavam Clarice, a viúva de Vladimir Herzog, morto pela repressão em 1975, como clamavam pela anistia aos exilados, simbolizados na canção pela figura de Betinho, o “irmão do Henfil”. A canção tornou-se trilha sonora do desembarque de dezenas de pessoas nos aeroportos brasileiros no final de 1979. Da mesma maneira, “Menestrel das Alagoas” foi executada dezenas de vezes nos comícios por eleições diretas, e “Coração de Estudante” marcou a despedida de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito após 21 anos de ditadura militar, morto antes mesmo de tomar posse.

O que escutamos hoje, nas rádios e nos discos, livres de qualquer forma de censura ou coerção, é resultado do que foi escrito, tocado e gravado naqueles anos. Muitos foram presos e exilados em razão do que colocavam em suas músicas. Outros simplesmente deixaram de cantar, abandonando para sempre os palcos ou o país, como Vandré e Taiguara. Reunir momentos dessa história e fazer o registro desse repertório é parte da construção da memória, esse objetivo comum que nos é tão caro. Para que não se repita. E para que não se perca.

Águas de Março
(Tom Jobim)
Principal intérprete: Tom Jobim e Elis Regina

Lançada em 1972, num compacto produzido pelo jornal O Pasquim, e inserida no LP Matita Perê no ano seguinte, a música dá início à fase ecológica da obra de Tom Jobim. Nessa fase, predominam letras escritas pelo próprio maestro, com forte teor ambientalista, como “O Boto” e “Passarim”. A versão mais famosa foi gravada em dueto com Elis Regina para o álbum Tom & Elis, de 1974.
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Preta Pretinha
(Moraes Moreira e Luiz Galvão)
Principal intérprete: Novos Baianos

Foi a música mais executada nas rádios na época do lançamento do famoso LP Acabou Chorare, dos Novos Baianos, em 1972. A harmonia simples de Moraes Moreira, fundada em apenas dois acordes, casa-se perfeitamente com a letra de Galvão, também econômica.
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Começar de Novo
(Ivan Lins e Vítor Martins)
Principal intérprete: Simone

Esta música foi feita às pressas, em maio de 1979, para ser tema de abertura da série Malu Mulher, exibida pela TV Globo. A canção traduziu o espírito da lei de anistia que se aproximava. Romântica, suave, delicada, a canção dialogava com o cool jazz de tal maneira que seria gravada em seguida pela americana Sarah Vaughan, em inglês.
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O Que É, O Que É
(Gonzaguinha)
Principal intérprete: Gonzaguinha

Gravada em 1982 com estrutura de samba-enredo, a canção estourou nas rádios por sua mensagem de otimismo. Tinha um inédito compromisso do compositor com a ideia de um amanhã melhor, sendo ele conhecido na década anterior pelo apelido de cantor-rancor, em razão de seu pessimismo e mau humor. “Eu sei/ que a vida devia ser bem melhor, e será/ mas isso não impede que eu repita/ é bonita, é bonita e é bonita”.
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Coração de Estudante
(Wagner Tiso e Milton Nascimento)
Principal intérprete: Milton Nascimento

Admirada por Tancredo Neves, a canção de Wagner Tiso letrada por Milton foi largamente reproduzida, em 1985, pelos jornais que noticiavam o velório e o enterro do presidente eleito que não chegou a tomar posse. Àquela altura, a música já era um fenômeno. Composta em 1983 por Wagner Tiso, numa versão instrumental, para a trilha do documentário Jango, lançado naquele ano, ganhou letra de Milton ainda em 1983 e entrou num LP ao vivo. Em 1984, foi cantada em muitos comícios pelas diretas.
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Para além dos movimentos musicais

Aqueles anos de chumbo foram cheios de intolerância e radicalização estética e política. Disputas insufladas nos festivais migravam para as gravadoras, os canais de TV, a vida pessoal. Na Copa de 1970, enquanto a seleção conquistava o tricampeonato no México, a linha dura do regime institucionalizava a tortura como método de repressão e fazia disparar as estatísticas (não computadas, não divulgadas) de mortes e desparecimentos políticos.

A oposição ao governo inflamava-se de tal maneira que surgiu a patrulha ideológica de esquerda que apontava o dedo para todos aqueles que ousavam gravar canções ufanistas e que revelassem amor pelo país, o que bastava para ser acusado de conivência com o sistema.

Dom & Ravel e Os Incríveis faziam canções ufanistas e tornaram-se queridinhos dos militares com “Eu te Amo Meu Brasil”. Nem “País Tropical”, de Jorge Ben (depois Benjor), escapou.

Enquanto as polarizações permaneciam — entre acústicos e plugados, engajados e desbundados, “comprometidos” e “traidores” — a maioria dos ouvintes de música popular brasileira queria mesmo era se divertir com o soul dançante de Simonal e Jorge Ben e, principalmente, com o pop-cafona de Odair José, Waldik Soriano e Agnaldo Timóteo, na época ídolos da música brega. Odair José, um dos artistas mais represtativos do período do regime militar, é o autor da canção “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, censurada, como tantas outras de sua autoria, não por ideologia política stricto sensu, mas por atentar contra os bons costumes.

Enquanto isso, o samba pedia passagem com Clara Nunes, a primeira mulher a vender mais de 100 mil cópias de um LP, Paulinho da Viola, Alcione, Martinho da Vila, Beth Carvalho, Paulo César Pinheiro e, diretamente de São Paulo, o macarrônico Adoniran Barbosa, entre outros.

A música sertaneja avançava com Tião Carreiro & Pardinho, Milionário & Zé Rico, Chitãozinho & Xororó, Sérgio Reis, apresentando os primeiros indícios do fenômeno de massa que seria consolidado nos anos 1990, com canções como “Estrada da Vida”, de Milionário & Zé Rico.

Referências - para saber mais

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