Memórias da Ditadura

Panorama de arte e cultura

Soa paradoxal: apesar do conservadorismo e da violência do regime, a produção cultural brasileira durante a ditadura militar vem sendo lembrada sobretudo pelo engajamento político à esquerda, pelo desejo de mudança, pelas críticas ao governo.

Politização da música, do cinema e do teatro

Compositores como Chico Buarque, Caetano Veloso e Geraldo Vandré atacavam de maneira mais ou menos velada a tortura, o autoritarismo, a censura. No Festival de Música Popular, promovido pela TV Record, em 1967, Edu Lobo e Capinam levaram o primeiro prêmio, com “Ponteio”. A música tem batida sertaneja e alusão à violência dos militares na letra. Nas entrelinhas, eles pediam o fim da ditadura:

“Certo dia que sei / Por inteiro / Eu espero não vá demorar / Este dia estou certo que vem / digo logo o que vim / Pra buscar (…) / Vou ver o tempo mudado / E um novo lugar pra cantar”.

O pensamento marxista marcava o Cinema Novo de Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman e Glauber Rocha, que não só exibiam a miséria do país, mas a colocavam no centro de sua linguagem. Era a chamada “estética da fome”. No teatro, grupos como o Oficina e o Teatro de Arena baseavam-se em peças de alto teor político e na irreverência das montagens, que desobedeciam a convenções estabelecidas e procuravam quebrar a passividade do público.

Na realidade, o movimento de politização da população e da cultura havia despontado antes do golpe de 1964. O nacionalismo, a politização e o desejo de mudança, tanto na linguagem teatral quanto na sociedade brasileira, estavam entre os pilares de grupos surgidos na década de 1950, como o Teatro de Arena e o Oficina. Isso transpareceu em espetáculos como Eles Não Usam Black-Tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, com o Teatro de Arena, que trata de uma greve operária, colocando moradores de favelas em cena.

Essa peça, na esteira do debate sobre as reformas de base do governo João Goulart, estava ligada à atuação do Centro Popular de Cultura da UNE, o CPC. O CPC viabilizava, por exemplo, a encenação de peças de teatro junto a associações de trabalhadores, na porta de fábricas ou na zona rural. A primeira atitude do governo militar foi de estancar esse processo, na tentativa de dissolver as conexões entre a cultura de esquerda e as classes populares. O CPC, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e o Movimento de Cultura Popular do Recife foram fechados.

Nessa primeira fase da ditadura, artistas e intelectuais de esquerda foram poupados e puderam continuar a produzir em liberdade. Com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, a repressão recrudesceu: artistas e intelectuais foram presos e precisaram deixar o país, não raro na condição de exilados.

Arte política versus entretenimento

Se de fato se pode falar em “hegemonia cultural da esquerda” durante o regime militar, algumas nuances devem ser levadas em conta. Em primeiro lugar, a influência da cultura de esquerda se concentrava nos grupos mais ligados à produção ideológica, como estudantes, artistas, jornalistas.

Intelectuais de direita, como Nelson Rodrigues, e fenômenos musicais que procuravam apenas a diversão, como a Jovem Guarda, gozavam de grande sucesso junto ao público. Apesar disso, em algumas áreas, como na música popular e na teledramaturgia, artistas de esquerda tinham grande influência junto ao público consumidor de discos e novelas de TV.

No final dos anos 1960, havia um embate acirrado entre quem se propunha a fazer uma arte política e aqueles que pretendiam apenas divertir as massas. Um dos pontos polêmicos era a discussão sobre a cultura nacional, herdeira do modernismo dos anos 1920, tanto na proposta de valorização do patrimônio popular por parte de Mário de Andrade, quanto na visão antropofágica de Oswald de Andrade.

Sob a ditadura, havia de um lado artistas marxistas, às vezes ligados ao Partido Comunista, produzindo uma arte alinhada com o nacional-popular e, de outro, a Tropicália, que a partir de 1968 propõe a mistura de elementos nacionais com importações, a partir da obra do artista plástico Helio Oiticica.

Na música, o tropicalismo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e outros foi criticado de início pela incorporação de elementos estrangeiros, como a guitarra elétrica. Esse instrumento era considerado um símbolo do rock e, consequentemente, do imperialismo norte-americano. O tropicalismo podia ser encarado como alienação, ainda que algumas de suas batalhas estivessem em total sintonia com bandeiras mundiais da contracultura, como o combate à moralidade burguesa. Além disso, o projeto tropicalista punha em xeque a figura do intelectual de esquerda, no cerne de sua atitude burguesa e elitista.

É inegável que, ao impor a proibição de discos, músicas, shows e filmes, determinar a interdição de teatros e a prisão e o exílio de artistas, o regime militar restringiu a liberdade criativa e impactou negativamente a produção cultural do período. No entanto, a censura e a repressão acabaram por dar uma importância renovada à vida cultural, um dos raros espaços em que era possível criticar a ditadura, ainda que de maneira alegórica, cifrada. A cultura brasileira mais crítica e esquerdista não fez a revolução, mas influenciou na formação dos jovens, promovendo ideais de democracia, igualdade social, liberdade.