Gal Costa

Caetano Veloso chiou quando o produtor Guilherme Araújo decidiu chamá-la de Gal. Nos primeiros shows e no primeiro compacto, seu nome constava dos programas como Maria da Graça. Guilherme tinha razão: parecia nome de cantora de fado de antigamente. Em Salvador, a maioria a conhecia por Gracinha. Os íntimos a chamavam de Gau, com “u”, forma predominante na Bahia. Guilherme preferiu Gal com “l”. Dizia que a outra opção, com “u”, soava menos feminina.

Caetano não gostou: Gal era abreviatura de General. E, naquele momento, Gal Costa tornava-se homônimo do então presidente Gal. Costa e Silva. Se fosse para chamar Gal, que fosse apenas Gal, sem nenhum sobrenome. Não teve jeito. A cantora gostou da proposta e surgiu assim na capa do primeiro LP, Domingo, gravado em dupla com Caetano em 1967.

Naquela época, o ídolo de Gal era o conterrâneo João Gilberto. Havia até quem a chamasse de João Gilberto de saias. Seu timbre era sereno, macio. Estreara em disco em 1965, cantando “Sol Negro“, composição de Caetano, em duo com Maria Bethânia no primeiro LP dela. No ano seguinte, seu primeiro compacto trouxe “Sim, foi você”, de Caetano, e “Eu vim da Bahia “, de Gilberto Gil.

Do LP partilhado em 1967, nasceu seu primeiro hit, o samba-canção “Coração  Vagabundo“, muito mais para “Insensatez” do que para “Alegria, Alegria”, que Caetano defenderia no Festival Internacional da Canção daquele ano. Em 1968, registrou nada menos que quatro faixas no álbum-manifesto Tropicália: “Baby” e “Enquanto Seu Lobo Não Vem”, de Caetano, “Mamãe Coragem”, de Caetano e Torquato, e “Parque Industrial”, de Tom Zé. E antes que o ano terminasse, defendeu “Divino, Maravilhoso” no Festival da Record. Composta por Caetano e Gil, a música inspiraria a criação de um programa de TV dedicado à turma da tropicália, que, entretanto, não sobreviveria ao final do ano.

Em troca da generosa menção que recebera na letra de “Baby”, Roberto Carlos resolveu presentear Gal Costa com uma canção feita especialmente em sua homenagem. “Meu Nome é Gal” foi gravada no primeiro álbum solo da cantora, já em 1969, ao lado de “Divino, maravilhoso” e outros sucessos imediatos. A canção revelou-se intuitiva ao recuperar, sem que o Rei soubesse, a mesma argumentação feita anos antes por Caetano: Gal dispensaria sobrenomes (“Meu nome é Gal / e desejo me corresponder com um rapaz que seja o tal / (…) E se um dia eu tiver alguém com bastante amor pra me dar / Não precisa saber sobrenome / Pois é o amor que faz o homem”). A tréplica viria com a inclusão de “Sua Estupidez”, de Roberto e Erasmo, no show e no álbum A Todo Vapor, de 1971.

Na década de 1970, Gal tornou-se musa dos hippies. Com pouca roupa e muita coragem, botava uma flor no cabelo, tomava um violão e encarava o palco sozinha, de pernas abertas. Trouxe o guitarrista Lanny Gordin para lhe fazer companhia entre solos dignos de Jimi Hendrix e encarou a plateia entoando algumas canções à capela.

No disco seguinte, Índia, Gal apareceu seminua na capa, regravou a guarânia que dava nome ao álbum, ousou imitar sons de pássaros e fechou os trabalhos com a já saudosa “Desafinado”, de João Gilberto. Mulher de fases, Gal amadureceria como cantora no final da década e trocaria a onda hippie por uma aparência e um repertório mais comerciais, aproximando-se do pop e da música romântica, consolidando-se como fiel representante do que viria a ser a MPB na década seguinte.

Gal Costa apresenta "Divino, Maravilhoso", de Caetano e Gil, no Festival da Record de 1968

Visual hippie no show Índia, de 1973, baseado no álbum homônimo. Aqui, Gal interpreta a música título

frases

  • "São mais de 30 anos de uma voz translúcida, íngreme e aguda, a um tempo pop e regional do Recôncavo. Ao obscurantismo político dos anos 60-70, Gal opôs sua claridade vocal. Na atualidade de sons tão desiguais, sua voz é um leme seguro. De Noel Rosa a Macalé, de Jobim a Herbert Vianna, o repertório que a baiana tem se faz, por sua voz, atemporal. Se Gal não aderiu ao predestinado iê-iê-iê, tampouco o renegou. O lugar de 'musa fatal', que às vezes dilui a personalidade de seu canto, abarca um ecletismo que vai do pop à MPB, passando por bolero, jazz, frevo e samba. Poucos intérpretes podem arriscar-se a tanto." (Yudith Rosenbaum, no livro "Música Popular Brasileira Hoje", organizado por Arthur Nestrovski, de 2002).

    "Registrado em disco em 1971, o espetáculo que inaugurou o Theatro Tereza Raquel (RJ) era o auge do movimento hippie no Brasil, que agora tinha sua própria musa. Depois da praia, os cabeludos entravam no teatro para ver aquele furacão baiano em cena no A Todo Vapor. Encarnando uma Janis Joplin tupiniquim, Gal Costa balançava as cadeiras, tocava violão com as pernas abertas e, diante de dezenas de malucos, provava que Ismael Silva era o nosso Robert Johnson. Em meio a tantas movimentações, ao longo de dez anos, ela saiu do completo anonimato para assumir o honroso posto de rainha tropical do desbunde, da alegria e do protesto." (Marcos Sampaio, no livro "1973: O ano que reinventou a MPB", organizado por Célio Albuquerque, de 2013).

    "Sabe uma faca me rasgando, um mundo se acabando. Não sei. Gal Costa cantora, Gal Costa, a mulher, a mulher terrível, a mulher linda, a noiva, a viúva, a maravilha. É muito difícil falar essas coisas. Não sei. Gal Costa sempre me trata com choques elétricos. Eu chego para vê-la e me arrebato por ela, e me arrebento por ela, e me desarrumo por ela. Não sei, é sempre surpreendente, eu nunca sei o que vai acontecer. Cada vez acontece uma coisa estranha, cada vez é como se a vida tivesse se partindo, se começando, se acabando. Gal Costa é muito maravilhosa." (Tom Zé, em depoimento de 1970).