Memórias da Ditadura

Periferias e Favelas

Não é incomum ouvirmos que, após a ditadura, o aparato repressivo do regime teria deixado de perseguir opositores políticos para se voltar contra um novo inimigo, que seriam os jovens, negros, moradores de favelas e periferias. Esse argumento é correto apenas em partes. É inegável que este é o perfil dos atingidos pela violência do Estado hoje. O problema da afirmação está na ideia de que esse setor da sociedade é um novo alvo. Na realidade, os territórios de favelas e periferias são historicamente os principais alvos da violência institucional, antes, durante e depois do regime ditatorial. Contudo, em diferentes contextos, essa violência ganha contornos específicos. Quais foram, então, as especificidades da ditadura em relação às práticas históricas de violação de direitos humanos? Em que medida a construção do complexo aparato repressivo para perseguir os opositores políticos contribuiu na conformação das forças de segurança que hoje continuam assassinando, torturando e desaparecendo?

Introdução

“Passei muito tempo interrogando presos de favelas, para conseguir descobrir onde havia depósito de armas, então a gente vai pegando prática. Eu tinha experiência”. Foi com essas palavras que Riscala Corbaje, um ex-agente do DOI-CODI do Rio de Janeiro – principal estrutura da repressão política da ditadura -, explicou ao Ministério Público Federal a razão de ter sido convocado para servir no órgão. O trecho do depoimento é revelador, pois evidencia as ligações entre a violência política que atingiu os opositores do regime e a violência historicamente voltada para grupos sociais considerados como “indesejáveis”, tais como os moradores de favelas e periferias.

O relato sobre a “experiência” de “interrogar presos de favelas” é um dos exemplos de como ao longo da história do Brasil os moradores de favelas e periferias foram alvos privilegiados da violência estatal, mesmo em períodos de vigência de constituições democráticas. As justificativas para essas violações mudaram no decorrer do tempo, mas sempre tiveram relação com tentativas de criar estigmas sobre esses espaços da cidade, marcando-os como lugares da insalubridade, da ignorância ou do crime. A principal expressão desses estigmas é a ideia das “classes perigosas”, criada nos momentos posteriores à abolição da escravatura em 1888 para caracterizar o enorme contingente de mulheres e homens escravizados que naquele momento obtiveram sua liberdade. Sintetizada nessa expressão está a perspectiva de que os indivíduos que vivem em situação de pobreza – no Brasil, em sua maioria negros – são mais propensos a cometer delitos, por isso representam um perigo à sociedade. Assim, justifica-se qualquer ação violenta contra eles, já que eles seriam criminosos em potencial.

Mas se estamos falando que ao longo de toda a história as “classes perigosas” foram os alvos preferenciais da violência estatal, isso significaria afirmar que não há diferenças entre a experiência cotidiana desses setores nos mais distintos períodos históricos? Isso seria equivocado de afirmar, pois os diferentes contextos trazem particularidades para a forma pela qual essa violência foi promovida. Fica então o questionamento: o que a ditadura militar iniciada com o golpe de 1964 trouxe de especificidade na relação entre o Estado e esses setores? Como mostraremos ao longo deste texto, os vinte anos de regime ditatorial significaram a acentuação de um tratamento em relação aos moradores de favelas e periferias pautado na militarização e na violência, bem como na reprodução e aprofundamento das desigualdades sociais. Vejamos como isso se deu.

As remoções forçadas

Como se sabe, o golpe de 1964 foi orquestrado por militares e apoiado por setores da sociedade, especialmente as elites econômicas, interessadas em implementar políticas para atender os seus interesses. Não à toa, pesquisadores e militantes vêm caracterizando o regime como uma ditadura empresarial-militar. Um desses setores contemplados pelas políticas da ditadura foi o capital imobiliário, ou seja, aquela parcela da elite econômica que lucra com atividades vinculadas à produção e reprodução das formas de moradia na cidade. Por isso, durante as mais de duas décadas de vigência do regime militar, as paisagens de muitas das nossas cidades foram profundamente alteradas. Favelas foram removidas para abrir espaço para moradias para as classes médias e altas, de modo que centenas de milhares de pessoas tiveram suas vidas impactadas. Assim, após duas décadas de ditadura, nossas cidades ficaram mais desiguais e mais excludentes.

Vejamos o exemplo da cidade do Rio de Janeiro, que é um dos mais emblemáticos de como a ditadura ajudou a aprofundar as desigualdades urbanas, violando os direitos de moradores de favelas e periferias. Uma das primeiras medidas do regime foi a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), que de imediato deu suporte a um processo de remoções de favelas que desde 1962 vinha sendo levado a cabo por Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara. Assim, o primeiro ano da ditadura foi marcado por inúmeros despejos ilegais. Os anos de 1965 e 1966 foram de relativa calmaria nas remoções, mas após chuvas que deixaram milhares de desabrigados, as propostas de erradicar as favelas do horizonte voltaram com toda força ao debate público. Assim, em 1968, o Governo Federal criou a Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande Rio (CHISAM), órgão vinculado ao Ministério do Interior, ocupado pelo General Afonso de Albuquerque Lima, garantindo recursos, força política e o apoio da estrutura repressiva para levar adiante as remoções.

Segundo dados compilados pela antropóloga Lícia Valladares, de 1962 a 1971 a política de remoções forçadas no Rio de Janeiro atingiu aproximadamente 140.000 pessoas, em 26.000 casas e 80 favelas. A maior parte desse contingente se deu já sob o comando da CHISAM. Essas remoções tinham um efeito profundo na vida dos atingidos. Deslocadas à força para locais muito distantes daqueles onde possuíam uma vida estabelecida, essas pessoas se viam, repentinamente, afastadas de seus locais de trabalho, de suas famílias, de suas redes de sociabilidade e de lazer.

Como os moradores se organizavam para resistir às remoções, o regime voltou os seus órgãos repressivos para sufocar protestos e resistências. Assim, foram registradas diversas prisões de lideranças da Federação de Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG) durante a ditadura. Etevaldo Justino de Oliveira, nomeado presidente da entidade após o golpe, foi preso pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em dezembro de 1964 por organizar um plebiscito entre os moradores da Favela do Esqueleto, na Zona Norte da cidade, a fim de verificar se era do interesse dos moradores sair do local. No contexto posterior ao AI-5, quando a CHISAM se voltou contra as favelas da Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul da cidade, a repressão foi ainda mais brutal. Outras lideranças da FAFEG foram presas, e notícias da época mostram que diretores da associação de moradores da Favela Ilha das Dragas, uma das ameaçadas de remoção, foram sequestrados e desaparecem.

Mas, para além dos efeitos individuais do deslocamento forçado, e da repressão contra lideranças políticas das favelas, é importante notar qual foi o sentido dessa tentativa da ditadura de erradicar as favelas do horizonte da cidade do Rio de Janeiro. O exemplo da Lagoa Rodrigo de Freitas, que foi mencionado acima, é o que melhor define esse sentido. Na região, localizavam-se duas das maiores favelas da cidade: a Praia do Pinto e a Catacumba. Em fins da década de 1960, o local, de exuberante beleza natural e próximo às praias de Ipanema e Leblon, passou a ser visto com muito interesse pelo mercado imobiliário. Assim, as duas favelas foram completamente erradicadas naquele período, abrindo espaço para uma enorme valorização da área.

Ainda que o caso das remoções no Rio de Janeiro seja o mais conhecido – e provavelmente o mais amplo -, ele não foi o único. Em Belo Horizonte, por exemplo, no ano de 1971, foi criado um órgão semelhante à CHISAM: a Coordenação de Habitação de Interesse Social de Belo Horizonte (CHISBEL). Segundo os pesquisadores Francis Cotta e Marcilene da Silva, o órgão atuou em 423 áreas da cidade, de onde removeu 10 mil barracos, atingindo cerca de 44 mil pessoas. Outro exemplo é o que ocorreu a partir de 1971 no Distrito Federal, com a implementação da “Campanha de Erradicação de Invasões”, destinada a remover moradores de favelas próximas ao Plano Piloto para cidades mais afastadas. A Vila do IAPI, que possuía mais de 80.000 moradores, foi erradicada e seus habitantes levados para a recém-criada Ceilândia. Em ambos os exemplos – de Belo Horizonte e do Distrito Federal -, a lógica que orientou o processo de remoções foi a mesma do Rio de Janeiro, ou seja, a de aprofundar a segregação sócio-espacial. Assim, durante a ditadura dezenas de milhares de pessoas tiveram suas vidas profundamente impactadas e seus direitos violados, no contexto de verdadeiras limpezas sociais e étnicas de determinadas regiões, cujo objetivo era garantir que os empreendimentos imobiliários voltados para as elites pudessem prosperar.

São poucas as pesquisas que dão conta de como processos semelhantes acontecerem em outras regiões do país, mas essa é uma agenda fundamental de ser aprofundada, pois os exemplos do Rio de Janeiro e Belo Horizonte já apontam para cifras que chegam às centenas de milhares de pessoas atingidas por essa política durante o regime militar. Nesse sentido, falar da violência ditatorial contra favelas e periferias passa necessariamente por levar em conta esses processos que aumentaram a segregação sócio-espacial, tornando as cidades brasileiras ainda mais excludentes e desiguais.

A militarização do cotidiano

Em setembro de 1982, o fotógrafo do Jornal do Brasil Luiz Morier tirou uma foto que ficaria eternizada. Batizada de “todos negros”, a imagem retrata homens negros amarrados por uma corda no pescoço, enquanto um policial os conduz para uma viatura. A fotografia, feita durante uma blitz da Polícia Militar em uma favela do Rio de Janeiro, é um forte símbolo do racismo institucional que orienta as forças policiais em nosso país marcado por trezentos anos de escravidão. Mas a imagem, feita ainda na vigência do regime ditatorial, também coloca a questão sobre quais os contornos específicos que a violência policial contra moradores de favelas e periferias ganhou durante a ditadura.

Em seu relatório final, a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro demonstrou como a presença de forças de segurança nas favelas e periferias durante a ditadura aumentou de forma intensa. Mas não foi somente um aumento quantitativo: a própria forma de atuação das polícias se tornou cada vez mais violenta e militarizada, sendo o principal aspecto o crescimento dos Esquadrões da Morte. Assim, o cotidiano dos habitantes dessas áreas das cidades passou a ser ainda mais marcado pela presença do Estado na forma de seu aparato repressivo. E os alvos não eram somente aqueles que se organizavam politicamente ou que resistiam a processos de remoções e despejos. Até mesmo os espaços de lazer, diversão e cultura passaram a ser objeto de vigilância e controle por parte do regime ditatorial.

São muitos os estudos que demonstram como a Lei de Vadiagem sempre foi um dos expedientes usados pelas polícias contra as chamadas “classes perigosas”. Em dezembro de 1975, o jornal O Globo noticiava que em seis meses, 1.300 pessoas haviam sido detidas por “vadiagem” no estado do Rio de Janeiro. A justificativa fornecida por policiais à reportagem era que, com o expediente, eles estariam prestando “um serviço à comunidade” ao isolar do convívio social “desocupados e maus elementos”. Se por um lado não existem dados mais completos sobre esse uso, por outro é possível utilizar esse número como indício sólido de que, ao redor do país, durante as duas décadas de ditadura, estamos falando de dezenas ou mesmo centenas de milhares de pessoas presas por serem vistas por agentes do Estado como “maus elementos”. Em outras palavras: por morar em regiões mais empobrecidas e por serem negras. Os relatos de moradores de favelas e periferias daquele período mostram como essas prisões eram arbitrárias, e como seus danos eram profundos. Às vezes, os indivíduos eram obrigados a passar dias nas delegacias, sem direito algum garantido – e sem nem mesmo saber a razão pela qual haviam sido detidos.

Porém, como dito anteriormente, o que ocorreu não foi somente um aumento quantitativo em relação às práticas arbitrárias e violações. Sem dúvidas, a principal mudança qualitativa que se pode perceber em relação à violência do Estado nas favelas e periferias é a disseminação dos esquadrões da morte e dos grupos de extermínio. Nas palavras do promotor de justiça que se notabilizou por combater esses grupos em São Paulo, Hélio Bicudo, os esquadrões eram um “poder extra-legal” que cometia as mais graves formas de violência contra a pessoa humana. Surgidos em fins dos anos de 1950, foi durante a ditadura que tais grupos cresceram, se multiplicaram e se tornaram uma realidade nas áreas de moradia das populações pobres ao redor de todo o país. Criados a partir da justificativa de que era necessário endurecer o combate ao crime, os esquadrões puderam se reproduzir na medida em que havia uma autorização dos seus superiores para que dessem prosseguimento àquele tipo de atuação. Essa autorização às vezes era tácita, mas às vezes era explícita.

Assim como no que diz respeito às prisões por vadiagem, não dispomos de muitos dados que permitam falar em números definitivos de pessoas presas, assassinadas e desaparecidas por esquadrões da morte e grupos de extermínio. Mas o exemplo da Baixada Fluminense – área periférica do Rio de Janeiro – nos dá algumas pistas. Em 28 de setembro de 1975, o Jornal do Brasil publicou uma tabela com estatísticas de homicídios cometidos pelos grupos de extermínio naquela região. Se o ano de 1964 ficou marcado por oito execuções sumárias, dez anos depois já eram contabilizadas 199 mortes. Ou seja, um aumento de 2500% nos registros de assassinatos do tipo.

Até aqui, estamos abordando como práticas historicamente arraigadas de controle social das chamadas “classes perigosas” ganharam novos contornos durante o regime. Mas a violência que se voltou contra as favelas e periferias também foi motivada também pelo receio da mobilização política desses setores. Ainda segundo a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, foram duas as principais justificativas utilizadas para essa atuação dos órgãos repressivos. A primeira era “a constante afirmação da propensão dos moradores de favelas à criminalidade, a qual possuía raízes já na Primeira República”. A segunda, “o medo – propagado principalmente a partir do pós-II Guerra Mundial – de que os favelados poderiam atuar como base para uma revolução de caráter comunista”. Assim, mobilizados por esses dois aspectos, órgãos como os DOPS e o Serviço Nacional de Informações monitoraram e acompanharam de perto a vida cotidiana nas favelas, e mais ainda as mobilizações políticas de seus moradores. Como falamos no tópico anterior, isso aconteceu de forma especialmente intensa durante processos de remoções forçadas, mas não foi somente nesses contextos.

O mais importante de perceber, porém, é que controle social e repressão política não eram aspectos apartados um do outro. Essas duas dimensões da violência contra moradores de favelas e periferias se retroalimentaram a todo momento. Um exemplo que nos ajuda a entender como isso se deu na prática é a violência que se voltou contra os bailes de música soul organizados por jovens negros nos subúrbios de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Bahia. A motivação para a repressão a esse fenômeno cultural era dupla. De um lado, o regime tinha receio que desses bailes se originasse um movimento tal qual os Black Panthers estadunidenses. Orientados pela Doutrina de Segurança Nacional – que ampliou muito o rol de posturas e condutas vistas como perigosas e subversivas -, e pelo ideário da democracia racial, mito segundo o qual o Brasil seria um país livre do racismo, os agentes de órgãos repressivos viam a reunião de dezenas de milhares de jovens negros nos finais de semana como algo profundamente ameaçador para a Segurança Nacional. De outro lado, porém, a mera reunião de jovens negros moradores de favelas e periferias, era por si só vista como perigosa e motivava a ação das polícias militar e civil contra as festas. Mesmo frequentadores dos bailes que não possuíam qualquer vínculo ou atuação política foram monitorados e presos.

Uma polícia política e social

Até aqui, relatamos como se deu a violência contra moradores de favelas e periferias a partir de dimensões da própria experiência cotidiana desses indivíduos. Mas é importante observar também como esse entrelaçamento entre controle social e repressão política se traduziu nos próprios órgãos de informação e segurança.

No início do texto, abordamos o caso de Riscala Corbaje para introduzir a relação da violência contras as “classes perigosas” e a repressão aos opositores políticos. Como Corbaje, houve muitos outros agentes. Em São Paulo, Sérgio Paranhos Fleury foi o nome que melhor expressou essa simbiose. Policial civil pertencente ao esquadrão da morte, Fleury – assim como Corbaje – foi chamado para atuar na repressão política em função da sua “competência” para levar adiante violações de direitos humanos. A partir de 1968, passou a integrar os quadros do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) de São Paulo. Outro membro dos órgãos de segurança que se notabilizou após a ditadura foi Cláudio Guerra, que tem uma trajetória parecida com a de Fleury e Corbaje. Policial civil lotado no DOPS do Espírito Santo, Guerra se tornou notabilizado não só pela violência com que se voltou para eliminar os opositores do regime, mas também pela sua atuação em esquadrões da morte naquele estado.

Vale a pena, aliás, chamar atenção para um aspecto relacionado aos DEOPS (ou DOPS, a depender do estado). Ainda que não tenham sido os órgãos responsáveis pelo maior número de assassinatos e desaparecimentos forçados, eles costumam funcionar como metonímia da estrutura repressiva ditatorial. Por isso, é interessante observar melhor o significado da sigla: Departamento de Ordem Política e Social. Ou seja, tratava-se de uma polícia voltada para a repressão dos opositores políticos, mas também daqueles socialmente indesejados.

Do ponto de vista da arquitetura institucional das forças de segurança, são alguns elementos que têm importância fundamental para compreendermos como se desenvolveu a militarização do cotidiano de moradores de favelas e periferias. Os dois principais são a subordinação das polícias ao Exército e a criação dos autos de resistência. Vejamos cada um deles.

Em julho de 1969, por meio do Decreto-Lei 667/69, a ditadura reorganizou as forças policiais do país. No ato normativo, o regime reforçou a subordinação das polícias militares ao Exército, estabeleceu a exclusividade da Polícia Militar para a execução do policiamento ostensivo. Determinou, ainda, que “o comando das Polícias Militares será exercido por oficial superior combatente, do serviço ativo do Exército, preferencialmente do posto de Tenente-Coronel ou Coronel, proposto ao Ministro do Exército pelos Governadores de Estado e de Territórios ou pelo Prefeito do Distrito FederaI”. Qual o resultado prático dessas decisões? Podemos ter algumas pistas a partir de uma ata de reunião da chamada “comunidade de informações” do 1o Exército, revelada pela Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. A “comunidade de informações” sempre foi caracterizada como o conjunto de órgãos estruturados pela ditadura para levar a efeito a repressão política. No entanto, uma reunião de agosto de 1971 demonstra que seu escopo era mais amplo. Após informes de órgãos como o DOI-CODI e o DOPS, um representante da Polícia Militar do Estado da Guanabara afirma que: “vai intensificar as batidas nas favelas, realizando-as da ordem de 3 a 4 vezes por semana”. Ou seja, o controle social das chamadas “classes perigosas” levado a cabo pela Polícia Militar ganhou status de atividade pertinente à Segurança Nacional. Fica ainda mais evidente, assim, como repressão política e controle social não eram dimensões apartadas entre si.

Outro aspecto importante foi a criação dos autos de resistência. Regulamentado por uma ordem de serviço da Polícia Civil do Rio de Janeiro em 1969, essa figura jurídica tinha por objetivo registrar a morte de civis em casos de supostos confrontos com a polícia. A institucionalização dos autos de resistência significava praticamente uma auto-anistia a cada assassinato cometido por policiais, dando aos agentes estatais a certeza de que não seriam processados ou responsabilizados por seus crimes.

A soma da militarização com a garantia da impunidade, marcas do regime ditatorial que durou mais de duas décadas, deixou como legado uma polícia que não acha que deve se submeter às leis e ao controle da sociedade. A lógica de enxergar nas “classes perigosas” e nos opositores políticos a figura de inimigos a serem combatidos continuou operando após a ditadura, tornando a violência de Estado um dos principais entraves à nossa democracia.

Militarização das favelas: a ditadura na democracia

Das músicas entoadas por policiais do Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro – o famigerado BOPE -, uma das mais famosas diz o seguinte: “o BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros, o BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil”. A referência aos guerrilheiros poderia ser vista como mera coincidência, se não fosse a história dessa instituição. No início dos anos 1980, o coronel Nilton Cerqueira (um dos responsáveis pelo assassinato de Carlos Lamarca) tornou-se Comandante Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Foi o responsável pela implementação da chamada “gratificação faroeste” – que premiava os policiais que mais matavam -, e a criação da Companhia de Operações Especiais (COE) – a qual deu origem ao BOPE. Esse caso específico é somente um exemplo que mostra com clareza como a autonomia e a militarização das forças policiais não foram enfrentadas com o fim da ditadura.

Se o fim do regime militar trouxe a perspectiva de uma diminuição da violência promovida contra opositores políticos, a dimensão do controle social contra moradores de favelas e periferias se tornou alarmante. Assim, a marca da transição para esses setores da sociedade não foi a do otimismo pelo retorno à democracia. Do contrário: os anos 1990 foram marcados por eventos como as chacinas da Candelária, de Vigário Geral e de Acari, no Rio de Janeiro; do Carandiru em São Paulo; e de Eldolrado dos Carajás no Pará. E ao longo dos anos, esse panorama não melhorou. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro registra que de 1998 a 2017 foram praticados 15.957 autos de resistência. Essa estarrecedora taxa de letalidade policial demonstra o quanto efetivamente a marca da violência de Estado continua presente em nosso cotidiano, em plena democracia.

Assim, mesmo após três décadas da promulgação da Constituição de 1988, falar com um morador de uma favela do Rio de Janeiro ou de qualquer periferia urbana do Brasil sobre o regime militar como um tempo passado, pode soar estranho. Afinal, violações de direitos como a passagem de tanques de guerra, as revistas vexatórias e abusivas, a presença de soldados ostensivamente armados, o uso de helicópteros, as prisões arbitrárias, as execuções sumárias, as chacinas e os desaparecimentos forçados são corriqueiras. Nos últimos anos, aliás, com a ampliação desmedida do uso do instrumento jurídico dos decretos de “Garantia da Lei e da Ordem” e, mais recentemente, com a intervenção federal-militar na área de segurança pública do Rio de Janeiro, esse tipo de presença do Estado nas favelas se tornou ainda mais comum.

Porém, como afirmamos no início do texto, cada período histórico traz elementos específicos para legitimar essa violência. Assim, o que se coloca no centro das justificativas para as violações de direitos cometidas por agentes públicos nos territórios empobrecidos hoje é a chamada “guerra às drogas”. Aliás, é muito relevante lembrar que as bases para esse discurso vão se construindo precisamente ao longo dos anos 1970, quando a figura do “traficante” de drogas passa a ocupar espaço central enquanto inimigo público central, ainda ao lado dos “subversivos” e “terroristas”. Para usar as palavras da jurista Vera Malaguti Batista, a lei 5.726 de 1971, que dispunha sobre medidas repressivas ao tráfico e ao uso de drogas, acabava por transpor “para o campo penal as cores sombrias da Lei de Segurança Nacional”.