Memórias da Ditadura

Civis que disseram SIM

Nem só de militares viveu a ditadura

Quando se discute o golpe militar no Brasil, na imensa maioria das vezes, atribui-se o protagonismo e a responsabilidade às Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica), definindo a ditadura instaurada como estritamente militar. Mas, recentemente, jornalistas e historiadores têm descrito um quadro muito mais complexo de organização do golpe, que coloca em relevo uma extensa participação de setores da sociedade civil no processo de construção e legitimação da tomada de poder pelos militares.

Entre os civis de tradição liberal, a necessidade de intervenção militar foi aos poucos sendo reforçada, por meio de um imaginário anticomunista que vinha sendo construído desde a primeira metade do século XX no país. O anticomunismo expressava o medo que se tinha das ideologias críticas ao capitalismo e do reformismo social e político. Mas, sobretudo, expressava a rejeição dos setores conservadores aos novos agentes políticos que emergiam como protagonistas da transformação social: os trabalhadores, os sindicatos, e suas demandas por participação política e social.

Durante o governo de João Goulart, foi promovida uma intensa campanha de deslegitimação do governo e de suas iniciativas no campo social. Associava-se o medo dos comunistas com a degeneração moral da sociedade, com o a ideia de o povo tomar o poder, com a quebra de hierarquias tradicionais da sociedade “cristã e ocidental”, e com o fim da propriedade privada.

Jango foi acusado de construir uma “república sindicalista”, isto é, um governo com tendências comunistas, por defender a reforma agrária, o voto para pessoas não alfabetizadas, e outros direitos para os trabalhadores. Também era acusado de planejar uma ditadura pessoal, como a de Getúlio Vargas durante os anos 1930 e 1940. O apoio do Partido Comunista Brasileiro (PCB) às reformas de base de Jango era visto como a evidência de que a União Soviética pretendia expandir por aqui a ideologia comunista, inimiga das liberdades individuais e da propriedade privada.

Essa mitologia fundamentou uma ação política de setores da sociedade civil que viam nos militares brasileiros e na aliança com os Estados Unidos a força necessária para combater e impedir o avanço daquilo que era julgado como “subversivo”.

Alguns políticos e empresários que apoiaram a ditadura

Henning Boilesen (1916-1971)
Henning Albert Boilesen foi um empresário de origem dinamarquesa que migrou para o Brasil na década de 1930. Ele presidiu a Grupo Ultragás na década de 1960 e, nessa condição, tinha muita influência junto à Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Boilesen teve uma participação efetiva no processo de perseguição aos opositores do regime militar no Estado de São Paulo. Foi um dos empresários que financiou, com apoio do meio comerciário e industrial, o aparato militar da Operação Bandeirante (Oban), que seria o modelo, mais tarde, para a institucionalização do Destacamento de Operações de Informações – Coordenação de Defesa Interna (DOI-Codi).

A participação de empresários no aparelhamento da repressão não foi algo apenas casual e esporádico. Além de levantar fundos para a repressão junto ao empresariado paulista, o próprio Boilesen chegou a participar de sessões de tortura. Muitas delas acompanhado de seu amigo, o delegado Fleury, fazendo uso de instrumentos que ele havia importado, como a chamada pianola Boilesen. Em 2009, Chaim Litewski produziu o documentário intitulado “Cidadão Boilesen”, no qual traça um perfil detalhado do empresário e os motivos que levaram a seu assassinato, em 1971, pela Ação Libertadora Nacional (ALN).

Delfim Netto (1928)
Antônio Delfim Netto se formou em Economia pela USP na década de 1950. Indicado por outro economista, Roberto Campos, assumiu a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo em 1966. No ano seguinte, a convite do então presidente militar Costa e Silva, ocupou o cargo de ministro da Fazenda, no qual ficou até 1974. Seu ministério ficou conhecido pela ideia de que era preciso fazer o “bolo crescer para então dividi-lo”, o que caracterizou o chamado “milagre econômico” brasileiro, entre 1968 e 1973.

Quanto a sua relação com o governo militar, Delfim Netto nunca questionou os pressupostos que justificaram o golpe, nem a estrutura que manteve os governos militares. Ao ser indagado, por exemplo, se ele tinha acreditado no fantasma do comunismo, na década de 1960, rebateu: “E você acredita que era fantasma? É claro que havia uma ameaça. Pior, não era de comunistas; era de ignorância”. Afirma até hoje que não tem nada do que se arrepender e, ao se referir ao Ato Institucional Nº 5 (AI-5), confirma que não implicava tortura ou seu recrudescimento. Segundo ele, não havia ninguém autorizado a maltratar alguém sob a guarda do Estado.

Roberto Campos (1917-2001)
Roberto de Oliveira Campos foi um dos economistas mais importantes e controversos do Brasil na segunda metade do século XX. Sua inserção institucional se deu ainda no governo de Getúlio Vargas, quando despontou no cenário econômico como um dos criadores do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Outra passagem importante do economista foi pelo governo de Juscelino Kubitschek, quando auxiliou na articulação do Plano de Metas. Nessa época Roberto Campos recebeu a alcunha de “Bob Fields”, em referência a seu entusiasmo com as políticas econômicas dos EUA após a Segunda Guerra.

Quando irrompeu o golpe, Campos era embaixador do Brasil em Washington. Por seu apoio declarado à tomada de poder pelos militares, foi chamado pelo presidente Castelo Branco para assumir o Ministério do Planejamento. Na década de 1980, foi um dos que votou contra as eleições diretas e a favor de Paulo Maluf no colégio eleitoral que escolheu Tancredo Neves como presidente da República. Era um antiesquerdista convicto. Certa vez afirmou: “É divertidíssima a esquizofrenia de nossos artistas e intelectuais de esquerda: admiram o socialismo de Fidel Castro, mas adoram três coisas que só o capitalismo pode dar: bons cachês em moeda forte, ausência de censura e consumismo burguês. Trata-se de filho de Marx numa transa adúltera com a Coca-Cola”. Ironia do destino, em 1999 assumiu a cadeira número 21 da Academia Brasileira de Letras (ABL), anteriormente ocupada pelo escritor e dramaturgo comunista Dias Gomes.

Theobaldo de Nigris
Foi uma das figuras chave no processo de associação de parte do empresariado paulista à repressão promovida pelo governo militar. Presidiu a Fiesp de 1967 a 1980. Nesse período, conseguiu pôr em contato inúmeros empresários que financiavam a repressão em coletas feitas na entidade, durante reuniões promovidas por Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos).

Recentemente, nos levantamentos feitos pela Comissão Nacional da Verdade, descobriu-se que, durante toda a década de 1960 e 1970, empresários do setor industrial e todos vinculados à Fiesp estiveram na Escola Superior de Guerra (ESG), ministrando palestras em torno do que eles chamaram de “movimento de defesa grupal dos princípios democráticos”. O próprio De Nigris ministrou uma palestra em julho de 1972 na qual foi enfático ao afirmar: “Acontecimentos que precederam a revolução vitoriosa de 1964 e o uso das guerras psicológicas e revolucionárias são exemplos vivos de que precisamos estar vigilantes e organizados”.

Paulo Maluf (1931)
A ascensão política de Paulo Salim Maluf está intimamente relacionada aos anos da repressão no Brasil. Logo após o golpe de 1964, tornou-se amigo de Delfim Netto, o que o fez se aproximar do governo de Costa e Silva e garantiu a ele a presidência da Caixa Econômica Federal em 1967. Poucos meses após a promulgação do AI-5, Maluf foi nomeado pelo governo militar como prefeito da cidade de São Paulo, já em 1969.

É a partir desse momento que ficou demonstrado seu empenho em colaborar com o regime, sobretudo em relação ao processo que desencadeou o chamado “milagre econômico”, promovendo na cidade de São Paulo um conjunto imenso de obras de grande porte. Ainda hoje tramita uma ação civil pública na qual Maluf é acusado pelo desaparecimento de presos políticos quando era prefeito. Os cadáveres foram sepultados de forma clandestina nos cemitérios de Perus e Vila Formosa, com a participação do Instituto Médico Legal (IML), do DOPS e da prefeitura.