Memórias da Ditadura

Partidos políticos

Entre 1966 e 1979, o Brasil tinha apenas dois partidos legais, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição consentida. Outros, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), continuaram a existir na clandestinidade. Já nos últimos anos da ditadura, o governo fez uma reforma partidária, para dividir a oposição, ao mesmo tempo em que tentava manter unido o partido do regime.

Partidos políticos e o regime militar

Num primeiro momento, logo após o golpe de 1964, foram mantidos os 13 partidos legalmente registrados. Mas essa situação só continuou até o primeiro teste: as eleições diretas para governador em 11 estados em outubro de 1965. O governo amargou uma derrota em cinco deles, inclusive nos estratégicos estados da Guanabara (atual Rio de Janeiro) e Minas Gerais.

A resposta da ditadura foi o Ato Institucional nº 2 (AI-2), extinguindo todos os partidos. A legislação que se seguiu permitia a criação de outros partidos, mas exigia como pré-requisito 20 senadores e 120 deputados federais. Na prática, era impossível a existência de mais do que dois partidos. Dificilmente haveria condições para uma terceira legenda reunir tantos parlamentares e se estruturar nacionalmente.

Entre 1966 e 1979, o Brasil viveu o bipartidarismo. Eram dois partidos legais, a Aliança Renovadora Nacional, mais conhecida como Arena, de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição consentida.

O MDB surgiu informalmente em 1965 e oficialmente no ano seguinte. Nos primeiros anos da ditadura, até 1970, o MDB se mostrava dividido entre aqueles que queriam se acomodar ao regime, sem provocar conflitos diretos, e aqueles que queriam manter um princípio claro de oposição, com base em bandeiras democráticas e liberais, como voto direto, liberdades civis e divisão dos poderes republicanos.

Nesse período, o quadro partidário real da oposição era mais amplo e mais à esquerda. Ainda que abalados pela repressão, continuavam a existir na clandestinidade o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a Ação Popular (AP), o Partido Operário Revolucionário (Port) e a Política Operária (Polop). Essas forças políticas, e as que delas se originaram, foram protagonistas de grandes lutas contra a ditadura. Os partidos de esquerda marxista se dividiram entre a opção pela luta armada e pela resistência civil.

Nos últimos anos da ditadura, o governo promoveu uma reforma partidária, na tentativa de dividir as oposições, ao mesmo tempo em que tentava manter unido o partido situacionista, herdeiro da Arena, o Partido Democrático Social (PDS).

Organizações de esquerda pré-golpe de 1964

As organizações de esquerda no Brasil são antigas, tendo sua origem nos vários grupos socialistas e anarquistas e anarco-sindicalistas do começo do século XX, bem como na fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em março de 1922. A história do PCB é a síntese das dificuldades de reconhecimento legal das organizações de esquerda. Em seus setenta anos de existência, foi uma agremiação considerada legal durante apenas 12 anos.

Nos anos 1930, alguns grupos dissidentes do PCB começaram a se organizar com base em ideias trotskistas, constituindo-se como partido em 1953: o Partido Operário Revolucionário dos Trabalhadores (PORT). Os pecebistas enfatizavam suas alianças com vários grupos políticos e setores sociais porque tinham uma visão de que as transformações politicas aconteceriam em etapas. Já os trotskistas passaram a apostar numa visão mais complexa da relação entre o capitalismo nacional e o imperialismo.

O PCB conseguiu ser um importante ator da política brasileira na fase do nacional-desenvolvimentismo e do reformismo, interrompida pelo golpe de 1964. Naquele momento, o PCB apostava em alianças de classe e numa “revolução nacional, democrática, antifeudal e anti-imperialista”. Vale lembrar que as teorias aceitas pelo PCB viam no latifúndio brasileiro uma espécie de “resquício” do feudalismo medieval, responsável pelo grande atraso econômico e social no campo brasileiro.

A esquerda católica foi outro protagonista político desde os anos 1950, por sua visão de militância e relação com a população pobre. Para a esquerda da igreja, a revolução brasileira deveria ser pensada de forma que levasse a uma libertação espiritual e coletiva, na qual o “pobre” seria o grande sujeito da transformação. A trajetória que vai da Juventude Universitária Católica (JUC) à Ação Popular (1962) sintetiza a caminhada da esquerda católica, passando de posições progressistas dentro da doutrina social da igreja a posições francamente revolucionárias e socialistas.

A JUC surgiu em meados dos anos 1950, sendo uma organização aceita pela hierarquia católica e pelo Vaticano, como forma de mobilizar a juventude. Havia também a Juventude Operária Católica (JOC), mas foi na JUC que se formou uma consciência mais radical sobre as desigualdades sociais e a necessidade de democratização efetiva da sociedade, contra as estruturas tradicionais de dominação. Essa nova consciência levou à crítica das leituras conformistas do catolicismo, que procuravam confortar e conformar os mais pobres de que seu destino era imutável e que deveriam aceitar as hierarquias sociais tradicionais, incluindo a submissão aos poderosos. A AP, no começo dos anos 1960, levou essa consciência ao limite, cruzando a fronteira entre o catolicismo progressista e o socialismo de origem cristã.

No contexto dos anos 1960, não podemos esquecer o surgimento de dois grupos importantes: o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e a Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop). O PCdoB era uma dissidência do PCB que se recusava a compor uma política de alianças e de “convivência pacífica” entre socialismo e capitalismo, encaminhando-se para incorporar as teses Mao Tse Tung sobre a revolução camponesa, implementada na China. Em outro sentido, surgiu a Polop, agregando socialistas não pecebistas de diversas origens. Para essa organização, a revolução brasileira deveria ser “socialista”, sem passar necessariamente pela etapa “nacional-democrática”.

No começo dos 1960 também se formou uma ala mais à esquerda do Partido Socialista Brasileiro, de existência legal, cujo representante máximo era Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas. Julião acenava com a possibilidade de um levante armado camponês para viabilizar uma reforma agrária efetiva.

A Revolução Cubana de 1959, e a guinada socialista de Fidel Castro em 1961, fornecia os marcos do contexto internacional que alimentava concretamente a possibilidade de uma revolução na América latina, causando grande impacto nas organizações de esquerda brasileiras no contexto do governo João Goulart. O Brasil se via como o grande território de batalha da Guerra Fria. E a direita não ficaria inerte, assistindo aos projetos revolucionários das esquerdas ganharem o primeiro plano.

Partidos de esquerda após o golpe

No campo da esquerda, ilegal desde 1947, mas efetivamente clandestino após 1964, o PCB apostava numa frente de oposição, junto com liberais, inclusive os arrependidos de ter apoiado o golpe. O partido, desnorteado desde então, pois suas teses sobre a marcha da “revolução brasileira” tinham se mostrado ineficazes, conseguiu reunir seu comitê central somente em maio de 1965.

Como resultado, lançou a Resolução de Maio, assumindo oficialmente os termos da resistência civil ao regime, ou seja, não armada. O documento caracterizava a ditadura como “reacionária e entreguista”, a serviço dos Estados Unidos, o que entrava em choque com os próprios interesses do capitalismo nacional brasileiro. Afirmavam que ela estava destinada ao fracasso por suas próprias contradições. Assim, os comunistas defendiam que era preciso se unir a todas as forças antiditatoriais para “isolar e derrotar” o regime. Isso deveria ser feito a partir de uma frente que defendesse as “liberdades democráticas” e fosse ativa inclusive nas limitadas eleições permitidas pelo regime.

Portanto, a agenda socialista ainda não estava em pauta, muito menos qualquer radicalização de palavras de ordem que levassem ao isolamento do partido. Tudo mais era “aventureirismo e pressa pequeno-burguesa” fantasiada de revolução. O recado era claro para os que já apontavam o caminho da luta armada.

O PCB enfrentou vários conflitos internos, a começar pela saída de importantes líderes comunistas que aderiram à luta armada no final dos anos 1960. Assim, em 1967, surgiu a Ação Libertadora Nacional (ALN), formada a partir de uma dissidência do PCB, liderada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara. Outro grupo de dissidentes formou o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), liderado por Jacob Gorender e Mário Alves.

Essas duas organizações colocaram em pauta um primeiro problema político a ser analisado, que dividiu as esquerdas da época. Os grupos armados deveriam ter um formato de “grupo de ação” ou “partido”? Na tradição leninista, a segunda opção implicava uma estrutura hierarquizada e burocrática, enquanto a primeira exigia maior descentralização e autonomia tática.

O fato é que a partir daí as esquerdas, sobretudo os grupos armados, se dividiram cada vez mais, chegando a um total de 33 organizações, muitas delas minúsculas, com apenas dezenas de militantes. Além das diferenças de formas organizativas, as divisões surgiam por causa de leituras diferentes do que seria a revolução no Brasil (socialista, nacionalista, democrática? Camponesa? Operária? Feita por uma aliança de classes sociais?) e quais táticas mais eficazes para combater os militares (fazer a guerrilha no campo ou na cidade? Fazer propaganda junto às massas ou priorizar o combate às forças de segurança? Agir a partir de pequenos grupos ou de um grande exército popular?).

Frente Ampla

As eleições de 1965 foram um claro sinal de que a coalizão golpista não se sustentaria sem tensões. Apesar de impactados com o golpe e o governo militar que se instaurava, os partidos críticos ao governo Castelo Branco (PSD, PTB) conseguiram se rearticular e lançar candidaturas independentes do regime, ganhando governos estaduais importantes como Minas Gerais e Guanabara.

À direita, Carlos Lacerda, que apoiara o golpe, rompia definitivamente com o governo. Lacerda, em 1968, diria que tinha o “dever de mobilizar o povo para corrigir esse erro do qual (…) participei”. Em 1966, vendo fechadas as portas para sua eleição a curto prazo, ele lançou a Frente Ampla. Lacerda estabeleceu contatos com Juscelino Kubitschek, cassado em junho de 1964 e exilado em Lisboa, e com João Goulart, exilado em Montevidéu. De início, Jango não se empolgou com a aliança e demorou até meados de 1967 para aderir ao grupo, dando-lhe um tom mais à esquerda.

A frente foi lançada em outubro de 1966. Naquele momento, o governo Castelo Branco derrapava na retomada do crescimento e parecia curvado a uma invisível, mas sempre citada, “linha dura”, com a “eleição”, ou melhor, a homologação pelo Congresso, de Artur da Costa e Silva como o próximo presidente da República. Boa parte da classe média conservadora que tinha aplaudido a queda de Goulart, começou a questionar seu governo e, por consequência, o próprio regime. A partir de 1966, sob o efeito do AI-2, que assumia o caráter autoritário e ditatorial do regime, vários segmentos médios ampliaram o coro da oposição.

O longo manifesto da Frente Ampla fazia uma bela ginástica retórica para explicar como Carlos Lacerda e Juscelino (com vistas também a Jango), antes mortais inimigos, estavam juntos contra o regime. Conforme o documento, os três estavam juntos em nome de uma luta maior contra algo que ameaçava o país, a ditadura, chamada assim mesmo com todas as letras. O manifesto era uma dura crítica ao regime e uma defesa do processo democrático interrompido em 1964. Desaprovava pesadamente a política recessiva de Castelo Branco e apelava a trabalhadores, estudantes, mulheres, empresários.

A Frente foi proibida em abril de 1968, em meio ao acirramento do conflito entre o movimento estudantil e o governo Costa e Silva.

Oposição legal e eleições

Além das organizações ilegais e clandestinas de esquerda, o MDB foi um importante canal de expressão das insatisfações da sociedade civil durante as eleições legislativas, que foram mantidas até como forma de legitimação por parte dos militares. Nos primeiros anos, a Arena, o partido do governo, alcançou enorme maioria na Câmara e no Senado e nas assembleias estaduais. Os governadores, depois de 1965 eleitos indiretamente, também eram quase todos da Arena.

Em 1970, a Arena teve uma vitória eleitoral esmagadora, tornando o exercício de oposição extremamente difícil, motivo pelo qual alguns membros do MDB chegaram a cogitar a autoextinção do partido.

Um grupo de 23 parlamentares, chamados de “autênticos”, iria contribuir para dar uma feição mais combativa ao MDB a partir de 1970. Os autênticos aproveitaram todos os espaços legais para fazer oposição, pagando muitas vezes com a perda de mandato, como se deu com o deputado Alencar Furtado, e até com prisão, como no caso do deputado Chico Pinto.

Entre 1970 e 1974, o partido se encolheu diante do apoio social, ativo ou passivo, ao governo militar em tempos de milagre econômico e repressão. Mas, em 1974, mais conectado com grupos sociais e intelectuais de oposição, o MDB surpreendeu o governo militar com uma vitória nas eleições legislativas, fazendo com que o regime temesse perder o controle do jogo político sucessório. Daí até a reforma partidária de 1979, o MDB conseguiu se firmar como uma frente de oposição, ora mais liberal conservadora, ora mais à esquerda, apesar das manobras legais do governo para controlar o partido.

Nas eleições de 1974, portanto, houve uma surpreendente vitória da oposição, elegendo 16 senadores em 22 vagas em disputa, que mudou toda a história. A sociedade, aparentemente tutelada, seduzida pelo “milagre econômico” e aderente à ditadura, deu uma resposta contundente nas urnas, abalando a estratégia dos militares de consolidar o regime autoritário. Além disso, ao longo da campanha, o MDB soube se aliar a outros atores da oposição política e cultural, como os intelectuais, os movimentos sociais e sindicais.

Ao apoiar o MDB, o PCB, que recusara a luta armada e insistia nas formas legais de enfrentamento, contribuiu para essa vitória, caracterizando uma aliança entre um partido de esquerda ilegal e a oposição legal. Os comunistas pagaram caro por isso. A partir de então, a repressão sobre o partido foi ainda mais brutal. No começo de 1975, o governo lançou uma grande ofensiva repressiva contra os pecebistas, prendendo vários dirigentes, com muitos deles entrando para a lista dos desaparecidos políticos e mortos sob tortura.

Além disso, nas eleições de 1976, o governo promulgou uma lei que proibia a campanha eleitoral na televisão e no rádio calcada em debates e discursos protagonizados pelos candidatos. Em vez disso, eles só apareciam em fotos na TV e sua apresentação se limitava aos currículos e ao número de candidatura. Essa lei ficou conhecida como “Lei Falcão”, em referência ao ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso por ser a “face dura da abertura”.

Mesmo assim, a oposição legal avançava, sobretudo nas grandes cidades, e catalisava o apoio de amplos contingentes da população. Percebendo que o MDB se avantajava a cada eleição, o governo promoveu uma reforma nos partidos.

Essa lei de reforma partidária, sancionada pelo Congresso em novembro de 1979, correspondia ao projeto estratégico do governo de dividir a oposição em muitas facções e manter o partido oficial unido. O Partido Democrático Social (PDS), novo nome da Arena, era alardeado como o maior partido do Ocidente e tinha as canetas, cargos e verbas do governo militar para fazer e acontecer.

Nos cálculos do governo, as principais lideranças do exílio, Brizola e Arraes, organizariam seus próprios partidos, dividindo a esquerda considerada “perigosa”. Os partidos comunistas continuariam proibidos, dentro das regras da Doutrina de Segurança Nacional. Os “novos” movimentos sociais eram considerados barulhentos, mas inaptos para a vida institucional partidária. Por fim, o regime sonhava com um partido forte de centro-direita, encabeçado por Tancredo Neves. O MDB queria continuar unido, mas o governo considerava que isso seria impossível.

A lei de reforma partidária dificultava ao máximo a vida da oposição que estava se reorganizando: proibia alianças, voto vinculado, exigia diretórios organizados em vários estados da federação e que os partidos lançassem candidatos em todos os níveis.

As oposições efetivamente se dividiram, enquanto a Arena permaneceu unida sob o PDS. O governo havia acertado sua previsão. De resto, não. O PMDB, novo nome do MDB, manteve parte dos quadros parlamentares, conseguindo amplo apoio do eleitorado nas eleições gerais de 1982.

Leonel Brizola não conseguiu a legenda PTB, que foi dado para Alzira Vargas, liderança expressiva apenas no sobrenome famoso. Sem recuar, no entanto, Brizola criou o Partido Democrático Trabalhista (PDT), verdadeira continuidade do trabalhismo histórico. O PDT era forte no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Em outros estados, porém, era frágil.

Esse quadro foi completado pela criação do Partido dos Trabalhadores (PT), anunciado em agosto de 1979 e fundado em fevereiro de 1980. Reunindo parte da esquerda não comunista, sindicalistas e movimentos de bases, e apoiado amplamente por intelectuais socialistas e radicais em geral, o PT em princípio poderia assustar o regime.

O novo quadro partidário do final da ditadura lançou as bases para o sistema de partidos do regime democrático. A principal novidade a partir dos anos 1980 foi a criação do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), a partir de uma dissidência do PMDB, e a criação de dezenas de pequenos partidos, muitos deles ligados a grupos de esquerda ou a igrejas evangélicas.

Depois da derrota da luta armada

Entre 1973, quando a esquerda armada já estava em colapso, e antes da reforma partidária de 1979, vários grupos de esquerda ilegal e clandestina continuaram atuantes. Esse campo ideológico era constituído por vários partidos, grupos e tendências, que atuavam sobretudo no movimento estudantil e sindical. Com a reforma, houve uma tendência de entrada e acomodação desses grupos nos novos partidos que surgiam, notadamente no PMDB e no PT, ainda que mantendo seus princípios teóricos, suas formas de ação e sua organização interna.

O velho PCB, ainda que desgastado pelas dissidências, era atuante junto aos políticos liberais, à imprensa, à cultura e aos sindicados. Mas, visivelmente, sua tática de priorizar as articulações amplas, de base institucional e parlamentar, não conseguiu lidar com os protestos de rua no fim da década. No final dos anos 1970, o PCB viu crescer uma corrente interna que passou a defender a democracia “como valor universal”, o que equivalia a reconhecer a legitimidade do jogo eleitoral e a abrir mão da “ditadura do proletariado” na luta pelas transformações rumo ao socialismo.

O PCdoB passou por um processo de discussão interna, no bojo da terrível derrota militar e política na guerrilha do Araguaia, e conseguiu se renovar. Optou por atuar junto aos movimentos sociais e estudantis, alocar seus militantes nas periferias urbanas, sem abrir mão de uma ação junto à oposição institucional, na senha de uma aliança nacional-popular contra o regime.

Os grupos trotskistas eram particularmente fortes no movimento estudantil, enfatizando a necessidade de organização da “luta de massa” nas entidades de base. Mas muitas vezes eles se digladiavam entre si, cada corrente se arvorando como a verdadeira tributária da herança teórica de Trotski. Basicamente, se dividiam em dois grupos, a Organização Socialista Internacionalista (OSI) e a Convergência Socialista. Tinham como marca uma leitura intelectualmente refinada do capitalismo brasileiro, de corte menos nacionalista que os dois partidos comunistas stalinistas, e uma abertura maior para temas ligados à pauta jovem, como a questão comportamental, as drogas, a liberdade sexual.

A esquerda católica, herdeira da Ação Popular e de suas dissidências, bem como das novas organizações de base nos bairros e sindicatos, também era forte, presente no movimento estudantil e nos novos movimentos sociais. Sua ênfase era numa “democracia da pessoa humana”, concretizada na auto-organização de base, eventualmente tutelada pela igreja, que se afirmava mais como anticapitalista do que como socialista de linhagem marxista.

Militantes socialistas de tradição “basista”, ancorada na defesa dos conselhos operários como condutores do processo revolucionário, em detrimento de um partido centralizado conforme a tradição pecebista, completavam o quadro geral das esquerdas nos anos 1970. O principal grupo nessa tradição era o Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP).

A imprensa alternativa era o ponto de encontro de todas as esquerdas, apesar da cada grupo também investir em seu próprio jornal, como o Voz Operária do PCB, Em Tempo do MEP, e O Trabalho, da OSI. Jornais como Opinião e Movimento tinham um caráter mais plural e tiveram seu auge de público entre 1974 e 1980.

Eleições e o fim do regime

Naquele momento, formaram-se seis partidos. O Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Arena, partido de apoio ao governo. O PMDB, de oposição, sucedeu ao MDB, mas acabou perdendo parte de seus parlamentares que foram se abrigar em outras legendas. O Partido Popular (PP) recebeu moderados do antigo MDB e liberais da Arena. A sigla PTB foi negada a Leonel Brizola, numa manobra para que o velho líder trabalhista não ficasse com a legenda histórica criada por Vargas, que registrou o Partido Democrático Trabalhista (PDT). E o Partido dos Trabalhadores (PT), uma novidade que surgiu da articulação dos trabalhadores do ABC, da esquerda católica, movimentos comunitários, grupos remanescentes de organizações da luta armada e trotskistas. O PCB e o PCdoB foram mantidos na ilegalidade e atuaram dentro do PMDB, até o fim da ditadura.

A grande frente ampla de oposição organizada em torno do MDB se desfez, diluída em vários partidos. Ainda assim, na eleição de 1982 o PMDB elegeu nove governadores (inclusive os de São Paulo e Minas Gerais) e 200 deputados federais. No cômputo geral, obteve mais votos que o PDS. Isso deu moral para negociar a transição com o regime. Um ano antes, o PP se dissolveu, e vários líderes moderados entraram para o PMDB, como Tancredo Neves, dando-lhe uma feição mais de centro-direita do que de centro-esquerda.

O processo pela democratização avançou e as eleições diretas para presidente da República entraram na pauta. A campanha das “Diretas já” empolgou a sociedade. Entre novembro de 1983 e abril de 1984, uma verdadeira festa cívica tomou conta das cidades brasileiras, com milhões de pessoas aderindo às manifestações, gritando “diretas já!”. O movimento começou no final de 1983, num comício em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo, mas ganhou força a partir de janeiro de 1984, quando o PMDB, maior partido de oposição, assumiu a liderança da frente pelas diretas.

Os comícios foram ganhando os meios de comunicação e agregaram todo o sentimento de cansaço em relação ao regime autoritário e a frustração política e econômica com o governo militar. A parte mais moderada do PMDB, liderada por Tancredo Neves, tentou esvaziar as ruas, para negociar uma transição pelo alto com os militares, mas a campanha já tinha vida própria por volta de abril.

Nos dias 10 e 16 de abril, Rio de Janeiro e São Paulo, respectivamente, colocaram mais de 1 milhão de pessoas nas ruas para exigir a volta da democracia eleitoral. Mas o regime militar não abria mão das eleições indiretas.

O governo, com a ajuda da parte moderada da oposição, evitou que o Congresso aprovasse a emenda constitucional proposta pelo deputado Dante de Oliveira, utilizando pressões de todos os tipos, desde censura até a mobilização de tropas em Brasília no dia da votação. A emenda recebeu 298 votos a favor e 65 contrários, mas foram decisivas as 113 ausências propositais, organizadas pelo governo e pelos deputados que queriam boicotar a proposta sem ir diretamente contra ela, impedindo o quórum mínimo para reformar a Constituição.

Mesmo as diretas não acontecendo, aquele que é considerado o maior movimento de massas da nossa história abriu caminho para a vitória da oposição na eleição indireta de 1984, pela qual um civil voltou à presidência da Republica, após 21 anos de governos militares. Começava, então, a “Nova República”.

Referências - para saber mais

Links:

O milagre econômico

A Doutrina de Segurança Nacional e o “milagre econômico” (1969-1973)

 O milagre econômico e seu legado

30 anos das Diretas Já

As Diretas Já e a queda da ditadura

Publicitário comenta a campanha das Diretas Já

Blog com a memória da campanha das Diretas Já

Bibliografia:

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984.

NADER, Ana Beatriz. Autênticos do MDB – semeadores da democracia . Paz e Terra, 1998.

NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

STEPAN, Alfred (org). Democratizando o Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1985.