Gilberto Gil

Quarenta anos antes de virar ministro da Cultura, em 2003, o baiano Gilberto Gil fazia jingles, cursava Administração de Empresas na Universidade da Bahia e lançava seu primeiro disco, um compacto duplo, por uma gravadora pequena de Salvador. Naquele mesmo ano de 1963, conheceu um estudante de Filosofia da mesma universidade chamado Caetano Veloso. Surgia ali a semente da mais importante revolução musical registrada no regime militar, o movimento tropicalista, liderado pelos dois a partir de 1968.

Antes disso, em 1965, Gil mudara-se para São Paulo para trabalhar na Gessy Lever (hoje Unilever) — um emprego “careta”, com direito a pastinha 007 — e emplacara um compacto simples pela RCA Victor, com “Procissão” e “Roda”. Já no ano seguinte, Gil começou a fazer sucesso na TV, como convidado do programa O Fino da Bossa, apresentado por Jair Rodrigues e Elis Regina. A cantora defenderia uma canção de Gil, “Ensaio Geral“, no 2º Festival da Record, ainda em 1966.

Mas foi em 1967 que tudo virou do avesso. Na edição daquele ano do festival, o próprio Gil defendeu uma composição sua, “Domingo no Parque“. Enquanto muitos tentavam banir as guitarras elétricas da música brasileira, como ele mesmo havia defendido meses antes numa manifestação em São Paulo, Gil se fez acompanhar pelo grupo de rock Os Mutantes. Mostrou uma canção fragmentada, num arranjo que misturava toques de capoeira a instrumentos distorcidos, diferente de tudo o que se ouvia. Naquele mesmo ano, Caetano também subvertia a ordem apresentando “Alegria, Alegria“, igualmente fragmentada, festiva, instigante.

As duas seriam classificadas em segundo e quarto lugar, respectivamente, e lançariam os pilares do movimento tropicalista, inaugurado em 1968 com o disco Tropicália. O movimento tinha o propósito de ampliar os horizontes da música brasileira, transpondo a patrulha da música engajada e incorporando elementos difusos (e libertários) do pop-rock, do cancioneiro regional brasileiro, da cultura brega, da sociedade de consumo.

Duas semanas após o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), em 27 de dezembro de 68, Gil foi preso junto com Caetano. Liberados na quarta-feira de cinzas de 1969, os dois partiram em julho para o exílio em Londres. Ao longo da década de 1970, Gil combinaria o legado da Tropicália a inspirações esotéricas, flertando também com a poesia concreta e com a música regional nordestina, e gravaria discos do porte de Refazenda, Refavela e Refestança (este em conjunto com Rita Lee). Foi preso por porte de maconha e, em diversas ocasiões, registrou em versos seu apoio à legalização de drogas, quase sempre disfarçado em títulos como “Barato Total”, “The Three Mushrooms” e “Abra o Olho”.

Entre as músicas com evidente cunho político, destacam-se “Refazenda” (“Abacateiro / acataremos teu ato”), a canção pré-exílio “Aquele Abraço“, e a rebelde “Cálice“, parceria com Chico Buarque: “Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano / quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado (cale-se!)”. Gil também marcou posição ao soletrar as palavras Brasil, Fuzil e Canhão em “Miserere Nobis” (1968), dele e de Capinan, e ao gritar, discretamente, “Ma-Ma-Marighella!” na música “Alfômega”, gravada no disco de Caetano de 1969.

Tempo Rei (1996), documentário sobre Gilberto Gil dirigido por Andrucha Waddington, Lula Buarque e Breno Silveira

frases

  • "Na década de 60, uma estirpe rara de compositores-letristas e letristas brasileiros alterou o conceito estético que se fazia da letra de música entre nós, alçando esse gênero ao status de poesia — cantada e popular: um patamar pouco alcançado, mesmo que de nossa perspectiva tenhamos pela frente o panorama da música popular mundial e de todos os tempos. Gilberto Gil foi uma das figuras máximas daquela geração de artistas, entre os quais se mantém como um de seus mais sensíveis e inventivos músicos-poetas, modelar para as gerações que depois dele vieram, e para as vindouras." (Carlos Rennó, em "Gilberto Gil: Todas as letras", de 1996).