Jair Rodrigues

Estava tudo certo para a estreia do show Dois na Bossa, no Teatro Paramount, em São Paulo, quando Baden Powell, escalado para dividir o palco com Elis Regina e o Jongo Trio, avisou que viajaria para a Alemanha. Era preciso encontrar um substituto com urgência.

Meio por acaso, o produtor Walter Silva foi jantar com sua mulher na boate Cave, na Rua da Consolação, e topou com um negro de quase dois metros pintando e bordando no palco. Seu hit era “Deixa isso pra lá“, um híbrido de samba com rap que ele entoava movimentando a mão direita para frente e para trás: “Deixa que digam / que pensem, que falem / deixa isso pra lá , vem pra cá, o que é que tem? / Eu não tô fazendo nada, você também.” Jair Rodrigues, o animado crooner que, àquela altura, já tinha dois LPs gravados, ambos no ano anterior, topou a empreitada e deu a maior aula de presença no palco para Elis Regina, então uma moça de 20 anos recém chegada a São Paulo.

Bastaram três noites em cartaz, de 9 a 11 de abril de 1965, para que o show virasse disco. O LP Dois na Bossa ultrapassou 1 milhão de cópias vendidas e consagrou a dupla mais irreverente da TV brasileira. Logo na primeira faixa, o álbum trazia um pout-pourri que remetia ao show Opinião, sucesso no ano anterior: Zé Ketti, Carlos Lyra, Gianfrancesco Guarnieri e Vinícius de Moraes eram ali representados em canções como “O Morro Não Tem Vez” e “Feio Não É Bonito”. Entre as canções, improvisos, provocações, gargalhadas.

Menos de um ano depois, Elis e Jair ganharam um programa na TV Record para exibir o mesmo repertório e a mesma vibração. O Fino da Bossa foi líder de audiência desde a estreia, em 1965. E carimbou o passaporte de Jair Rodrigues para o Festival da Record de 1966.

Geraldo Vandré e Théo de Barros tinham feito uma música irrepreensível intitulada “Disparada”, mas Vandré ainda não obtivera o traquejo necessário para encarar ao microfone o Paramount lotado, com seus 1,7 mil ingressos esgotados. Foi Solano Ribeiro, organizador do festival, quem sugeriu Jair Rodrigues. Num primeiro momento, Vandré achou um disparate. Jair era sambista, e brincalhão demais para defender uma toada de inspiração sertaneja com uma das letras mais sérias e aguerridas da década. Resultado? Faturou o primeiro prêmio, num empate inédito com “A Banda”, uma marchinha de Chico Buarque defendida por Nara Leão.

Desfeita a dupla com Elis e terminada a era dos festivais, na virada da década de 1970, Jair Rodrigues manteve uma produção regular e nunca deixou de excursionar. Nascido em Igarapava, na região de Ribeirão Preto (SP), o cantor flertou também com a música sertaneja por um período. Quando criança, formara dupla com o irmão Jairo e cantara pela primeira vez no rádio tendo como padrinhos a dupla Venâncio e Corumbá. Voltaria a transitar por esse repertório depois do sucesso de “Disparada”, gravando músicas como “Menino da Porteira” e “Majestade o Sabiá”, nos anos 1980, mas sem jamais abdicar do samba. Os filhos Jair Oliveira e Luciana Mello também seguiram carreira musical.

Jair Rodrigues defende a música "Disparada", de Théo de Barros e Geraldo Vandré, no Festival da Record de 1966

Jair e Elis, em excursão a Portugal, em 1968, interpretam o famoso pout-pourri com canções sobre o morro, incluído no show Dois na Bossa, de 1965

frases

  • "Como cantor, é certamente um dos maiores do país em qualquer época. Dono de agudos admiráveis, afinação sobrenatural, um timbre mais alto e seguro do que seus contemporâneos, ele habitava um universo em que só cabiam quatro ou cinco estrelas daquele porte. Mas havia um contraponto que era ao mesmo tempo um trunfo e um handicap: Jair Rodrigues era por demais espontâneo, muito chegado à improvisação, à fuga do roteiro estabelecido. Tinha um espírito livre." (Jotabê Medeiros, no jornal O Estado de S.Paulo)

    "Jair Rodrigues cantava com tanta alegria que até incomodava. Suas interpretações exageradas às vezes prejudicavam as músicas. Mas a graça, com ou sem trocadilho, estava nesse excesso. Ele se profissionalizou em São Paulo no momento em que o estilo de João Gilberto se impunha como paradigma. E seguiu firme na direção contrária. Acertou. (...) Artista da indústria, buscou o sucesso também na seara sertaneja e em romantismos diversos. Parecia fazer com verdade e prazer o papel de palhaço, plantando bananeiras nos palcos ou descendo deles para brincar com a plateia. (...) "O sorriso do Jair", para usar a expressão que deu título a seu disco de 1966, foi uma proposta existencial e até estética. Vai ficar para sempre." (Luiz Fernando Vianna, na Folha de S.Paulo)