Odair José

Poucos artistas falavam à classe C como o goiano Odair José. Brega, cafona, popular, o artista tinha todos os predicados que permitiam à sua música chegar a toda parte. Se Chico Buarque, Edu Lobo e Geraldo Vandré tinham problemas com a censura, em obras que raramente transpunham o circuito universitário/intelectual, cantores populares como Odair José, Waldik Soriano e até Agnaldo Timóteo, soberanos no interior e nas periferias, também tiveram seus entreveros com a lei. Nesses casos, o que incomodava, quase sempre, eram aspectos de comportamento: versos e canções atentavam, segundo a ótica dos censores, contra a moral e os bons costumes.

Odair José foi o líder dessa turma, aquele que colecionou mais vetos. “O que rolava antigamente na música popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do luar”, disse a Paulo César de Araújo, autor de “Eu não sou cachorro, não: Música popular cafona e ditadura militar”, de 2002. “E eu vim falando de cama, de pílula, de puta, de empregada doméstica, porque essa é a realidade do Brasil”.

Em “Vou Morar com Ela” (1971), o personagem da letra desprezava a instituição casamento. Em “Cristo, Quem é Você?” (1972), questionava a tradição católica: “Na Sexta-Feira Santa eu Lhe procurei / fui à Sua casa, mas lá não Lhe encontrei”. “Em Qualquer Lugar”, de 1973, foi a primeira a ser interditada de cabo a rabo, graças, segundo a censura, às “atitudes comportamentais alusivas ao desejo sexual”. Ou seja: pornografia. “A gente ama até demais / e quando se tem um grande amor / em qualquer lugar a gente faz”, dizia o refrão.

Ainda em 1973, a consagração de Odair José se deu por vias nada ortodoxas. “Você diz que me adora / que tudo nessa vida sou eu / então eu quero ver você / esperando um filho meu / pare de tomar a pílula / pare de tomar a pílula / porque ela não deixa nosso filho nascer”, dizia a letra de “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)“. O autor incomodava até quando recorria à ironia, como neste caso, irmanando-se no pensamento conservador e religioso. É que, agora, a música fora vetada porque batia de frente com um programa de distribuição de anticoncepcionais encampado pelo governo de olho no controle da natalidade. Destemido, o cantor partia para a próxima letra.

O ano de 1973 marcaria ainda uma tentativa frustrada de aproximar Odair José da cultura de elite, aos moldes do que Caetano tentara fazer gravando autores como Vicente Celestino, em 1968. Ao lado de Caetano, Odair José subiu ao palco do festival Phono 73 para cantar sua “Vou Tirar Você Desse Lugar“, em que o eu lírico assumia sua paixão por uma prostituta e prometia resgatá-la da zona. A vaia que ecoou no Anhembi foi proporcional à intolerância que os universitários nutriam contra aqueles que, como o arauto da pílula, eram cafonas e, por isso, tachados de alienados, mesmo quando metiam o dedo na ferida do conservadorismo oficial.

“Não há nada mais Z do que a classe A”, protestou Caetano ao microfone. As vaias seriam eliminadas no processo de masterização do disco lançado pela Phonogram com os melhores momentos do show. Como a polêmica da pílula continuava a crescer, o governo proibiu a execução do LP em qualquer local ou meio de comunicação. Odair José se mandou para Londres.

frases

  • "Sua música não marcou ou marcará época por arranjos refinados ou melodias impactantes. O que vale é ouvir o que o filho ilustre de Morrinhos tinha a dizer não apenas sobre os sentimentos que nutria — afinal, nunca saberemos, e nem interessa saber, se o narrador de suas canções também é seu próprio personagem — mas sobre o que a sociedade de 1973 (ano da gravação de 'Uma Vida Só') ainda lutava para mascarar por trás do pano desgastado da moral e dos bons costumes." (Talles Colatino, no artigo "O ano em que Odair José amou demais", publicado em "1973: O ano que reinventou a MPB", organizado por Célio Albuquerque, de 2013).

    "Na conjuntura atual de nossa música popular, é o único cara corajoso o bastante para contestar junto à classe C. A mais conservadora entre as classes. A mais apegada aos valores criados, tabus. A última a deixar cair os preconceitos. E é nessa classe que Odair José vende seus discos." (Hildegard Angel, na reportagem "Odair José, o contestador da classe C", do jornal Última Hora, em 19/09/1975, citada por Paulo César de Araújo em "Eu não sou cachorro, não", de 2002).

    "Caetano então resolveu radicalizar, convidando para seu palco aquele artista considerado o mais redundante, banal e comercial: Odair José. Anunciado como 'uma noite incrível reunindo o maior espetáculo de música brasileira de todos os tempos', o show de Caetano Veloso — com o convidado surpresa Odair José — foi o último da mostra Phono 73, que contou naquele mesmo domingo com apresentações de Gal Costa, Maria Bethânia, Nara Leão e outros. Espécie de 'patinho feio' incluído em uma festa que reunia a nata da MPB, Odair José não poderia deixar de causar reação em um público preso a preconceitos estéticos de sua formação de classe média." (Paulo César de Araújo, em "Eu não sou cachorro, não", de 2002).