Víctor Jara

Em 12 de setembro de 1973, cerca de 600 professores e estudantes da Universidade Técnica do Estado (UTE), em Santiago, faziam vigília no campus. O grupo manifestava seu apoio ao presidente Salvador Allende, deposto na véspera por um golpe militar patrocinado por Augusto Pinochet, quando foi conduzido ao Estádio Chile. Era um ginásio de esportes no qual se realizavam shows, partidas de vôlei e basquete, que tinha sido convertido desde o dia anterior em centro de detenção e quartel general da repressão. Entre os presos estava um conhecido compositor de cabelo encaracolado, logo identificado por um dos soldados. “Não o tratem como mulherzinha”, orientou o oficial. Seu nome era Víctor Jara.

Professor da Faculdade de Comunicação da UTE, Víctor Jara militava no Partido Comunista, havia apoiado a eleição de Allende pela Unidade Popular em 1971, e firmava-se como o maior nome da canção de protesto em seu país. Instantes depois de pisar no Estádio Chile, Víctor Jara foi brutalmente espancado. Seu rosto vertia sangue quando lhe esmigalharam também as mãos, a coronhadas, diante de todos. Seus torturadores afirmavam fazer aquilo para que ele nunca mais empunhasse um violão.

Cinco dias após a prisão, Víctor Jara foi assassinado. O laudo emitido após a autópsia, feita quando localizaram o cadáver num matagal, indicou uma porção de ossos quebrados e 44 marcas de balas. Antes de morrer, conseguiu redigir um poema, entregue aos companheiros de cárcere, que providenciaram cópias e conseguiram preservá-lo, dando-lhe mais tarde o título de “Estádio Chile“: “Somos cinco mil aquí/ en esta pequeña parte de la ciudad/ (…) Seis de los nuestros se perdieron/ en el espacio de las estrellas./ Uno muerto, un golpeado como jamás creí/ se podría golpear a un ser humano./ Los otros cuatro quisieron quitarse/ todos los temores, / uno saltando al vacío,/ otro golpeándose la cabeza contra un muro/ pero todos con la mirada fija en la muerte./ ¡Qué espanto produce el rostro del fascismo!”. Trinta anos depois, em setembro de 2003, o mesmo Estádio Chile foi nomeado Estádio Víctor Jara.

Filho de lavrador, Víctor Jara tocava e cantava num grupo de música folclórica quando conheceu Violeta Parra, na segunda metade dos anos 1950, e foi convencido por ela a continuar insistindo na carreira. Em 1965, já tinha gravado um disco com o conjunto quando passou a frequentar a Peña de los Parra. Seus dois primeiros LPs como artista solo foram lançados em 1967.

Aos poucos, a canção folclórica e os temas rurais foram cedendo espaço para a música de protesto, mais urbana e, ao mesmo tempo, profundamente alinhada às bandeiras políticas da época. Víctor apoia o líder vietnamita Ho Chi Min, citando-o nominalmente em plena guerra fria na canção “El Derecho de Vivir en Paz“. Grava “Cruz de Luz”, de Daniel Viglietti, solidarizando-se com o padre e guerrilheiro colombiano Camilo Torres. Monta um repertório com canções em homenagem a Pancho Villa, Che Guevara e Salvador Allende. Musica o poema de Neruda “Aquí me Quedo“: “Eu não quero a pátria dividida / cabemos todos na minha terra”.

Mais conhecido como compositor de “Te Recuerdo Amanda”, gravada por Mercedes Sosa, Joan Baez, Ivan Lins e muitos outros, Víctor Jara registrou sua missão na primeira estrofe da canção “Manifesto“: “Eu não canto por cantar/ nem por ter uma voz bonita/ Canto porque o violão/ tem sentido e razão.”

frases

  • "O Estádio Chile foi rebatizado de Estádio Victor Jara. As fitas máster das gravações do músico que a ditadura se empenhou em destruir foram laboriosamente substituídas por outras versões. Brotaram remixagens, remasterizações, foi lançada uma caixa com 9 CDs, republicada uma antologia com seus poemas. Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado. Hoje, Victor Jara teria 81 anos." (Dorrit Harazim, em texto publicado no jornal O Globo, em setembro de 2013).

  • "A obra do compositor e intérprete é encarada como instrumento para despertar consciências, e o artista não é simplesmente alguém que aderiu às causas defendidas pela unidade de camponeses, proletários e estudantes, mas sim alguém que pertence a esses grupos, que com eles se identifica e, por isso, se torna seu porta-voz." (Caio de Souza Gomes, em sua dissertação de mestrado pela FFLCH-USP "Quando um mundo separa uma ponte une: conexões transnacionais na canção engajada na América Latina", de 2013)

  • "Víctor, bem sucedido diretor de teatro, cantor e compositor popular, seguia ao lado da gente com que havia nascido: operários e camponeses do Chile. Ele dizia: 'A melhor escola de arte é a própria vida'. Dizia também: 'Às vezes gostaria de ser dez pessoas para ajudar em tudo o que há para ser feito'. Passou os últimos quatro anos compondo, cantando, percorrendo todo o Chile e a América Latina, sempre pronto para cumprir a tarefa que fosse necessária. Eu o vejo no campo, debaixo do sol ofuscante, ajudando na colheita do milho, e durante o repouso, sentado na terra seca e poeirenta, sob eucaliptos, pronto para tocar violão e cantar, escutar ou discutir. Vejo-o num armazém, equilibrando-se sobre uma enorme pilha de sacos de açúcar. Está nu até a cintura e transpira. É duro o trabalho de levantar os pesados sacos e organizá-los na velocidade com que os grupos de trabalhadores voluntários os trazem dos vagões do trem. Todos lutam contra as consequências da greve dos donos de caminhões, que a CIA financia para paralisar o Chile. Víctor sorri e faz piada. Seu entusiasmo é contagioso, e a seu redor todos trabalham melhor em conjunto." (Joan Turner, viúva de Víctor Jara, em artigo para a revista Araucária de Chile, publicado em 1978).