Memórias da Ditadura

Movimentos musicais

Diga-me o que ouves e te direi quem és. A partir dos anos 1950, a música passou a ser tratada como um território em disputa: cada ritmo uma religião, cada gênero um time de futebol. Não apenas se disseminaram os rótulos, a ponto de os gêneros musicais começarem a ser impressos nos selos dos álbuns, como também se difundiu o costume de averiguar a filiação estética. Em outras palavras, a “panelinha” a que cada artista estava associado. Fulano cantava samba, cicrano fazia choro, beltrano tocava toadas. E fazia toda a diferença saber se o samba era de morro, de carnaval, de breque ou samba-canção. Dependendo do samba, dava para concluir se um artista era mais solar ou noturno, pobre ou rico, enfim, que apito ele tocava.

Foi assim que os jovens da Zona Sul carioca, carentes de um repertório que tivesse a sua cara — mais requintado que os sambas de morro, mais praiano que os sambas-canção de boate, em que imperava a fossa e a dor de cotovelo — investiram suas fichas na bossa nova, movimento musical surgido em 1958. Movimento, sim, porque era mais do que um gênero. Harmonia, melodia, ritmo e letra transmitiam a essência do que era ser jovem na Zona Sul do Rio de Janeiro. A música não se limitava aos discos e shows. Todo o resto tinha de fazer sentido também: das roupas ao corte de cabelo, das gírias aos locais frequentados.

Essa lógica se estendeu aos demais movimentos que se seguiram. A jovem guarda, criada pela moçada com um olho no rock estrangeiro. As canções de protesto, preferidas por quem militava no movimento estudantil e na resistência à ditadura. O tropicalismo, que buscava assimilar guitarras e música regional, liberdade de expressão e cultura de massa. Cada um à sua maneira, os movimentos contribuíram para elevar a prática musical a um patamar político sem precedentes no Brasil.

Processo semelhante caracterizou a música latino-americana, especialmente nos países que viviam sob ditaduras militares ou sob governos socialistas recentes. A nueva trova cubana, o nuevo cancionero argentino, o canto popular uruguaio, a nueva canción chilena foram algumas denominações mais ou menos locais para uma tendência geral de valorização de ritos folclóricos e expressões populares, quase sempre revestidas com letras de protesto.

Em todos esses lugares, desde meados dos anos 1960, a arte foi cerceada pela censura, e muitos compositores foram presos e exilados. Alguns morreram. O chileno Victor Jara, preso no dia do golpe que depôs Salvador Allende em 1973, teve as mãos esmigalhadas e o corpo crivado por mais de 30 tiros numa noite de extermínio do Estádio Nacional, em Santiago (o mesmo que, em 2003, virou Estádio Victor Jara). No Brasil, o arbítrio se abateu principalmente sobre os autores da música de protesto e da Tropicália — Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Taiguara e Geraldo Vandré foram alguns dos artistas presos e exilados.

A função social da música deixava de ser o mero entretenimento. As canções eram concebidas para fazer pensar. E contaminavam as demais esferas da vida cultural: a moda, o comportamento, a atitude. E não é que, de uma hora para outra, cada ouvinte percebeu que era preciso procurar sua turma?

Bossa Nova

Foi o maior movimento musical brasileiro do século XX. Tanto que virou sinônimo de música brasileira no mundo todo a partir de 1960, com dezenas de canções regravadas, em português ou em inglês, por músicos de jazz e big bands. Elevou-se, assim, à décima potência o poder de penetração demonstrado por Carmen Miranda décadas antes, quando o samba se firmava como marca nacional.

Surgido em 1958, o movimento da bossa nova, num primeiro momento, se restringia à Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua missão era satisfazer uma demanda específica dos jovens de classe média e alta que frequentavam Copacabana e Ipanema, arranhavam o violão (inclusive nas praias), e não se identificavam com o que tocava nas rádios e nos discos.

Naquela época, a música brasileira era produzida quase sempre com arranjos carregados, cheios de instrumentos, e os cantores esbanjavam um vozeirão empostado de locutor. O modernismo que influenciava todas as artes era avesso a esses exageros. Em especial nas letras, quase sempre sofridas, que versavam sobre dor-de-cotovelo e traições, e transformavam a noite carioca num cenário de fossa.

Contra essa corrente, três artistas se destacaram. Tom Jobim, com formação erudita, criava harmonias complexas disfarçadas de coisa simples, como a arquitetura de Oscar Niemeyer. Vinícius de Moraes, poeta reconhecido e diplomata, adicionou versos prosaicos à harmonia do parceiro, compondo canções leves e risonhas que falavam sobre “peixinhos a nadar no mar” e “beijinhos que darei na sua boca”. Por fim, João Gilberto deu o golpe de mestre: gravou aquilo com uma voz suave, intimista, que em nada lembrava o vozeirão dos nossos astros, e resumiu todo o ritmo de uma bateria de escola de samba numa batida de violão. Tal cadência passou a definir o ritmo em oposição ao samba.

No mais, os bossa-novistas tinham entusiasmo o bastante para espalhar aquela batida pelos quatro cantos. Musa inspiradora do grupo, Nara Leão tinha pouco mais de 14 anos quando se matriculou na academia de violão de Carlos Lyra e Roberto Menescal. A partir de então, passou a abrir seu apartamento para reuniões às quais compareciam os principais nomes do movimento.

A bossa nova foi hegemônica como movimento apenas até 1962, quando dois de seus fundadores, Tom Jobim e João Gilberto, se mudaram para os Estados Unidos (antes de o golpe militar ser deflagrado). O patrimônio lançado nesses quatro anos, no entanto, serviu de pilar para a obra de muitos dos principais cantores e compositores que os sucederam e que foram os pioneiros dos movimentos seguintes. Desde a bossa nova engajada, variação liderada pelos músicos Carlos Lyra, Nara Leão, Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Ruy Guerra e Geraldo Vandré, entre 1961 e 1965, até a Tropicália (Caetano Veloso diz que João Gilberto é seu maior ídolo), de 1967, passando pelo protesto de Chico Buarque, Milton Nascimento e outros.

Chega de Saudade
(Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: João Gilberto

Esta música é considerada o marco fundador da bossa nova, primeira canção a unir a santíssima trindade do movimento: harmonia de Tom, letra de Vinícius e a batida do violão de João (além de sua voz característica). Foi gravada por Elizeth Cardoso em 1957, ainda sem a voz de João, que já executava o violão, e estourou no ano seguinte, num compacto simples do cantor baiano.
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Desafinado
(Tom Jobim e Newton Mendonça)
Principal intérprete: João Gilberto

Uma das primeiras gravações de João, já em seu segundo compacto, ironizava na letra a dura lida dos cantores da noite. Foi a primeira a empregar a expressão “bossa nova”, funcionando como autorreferência: “Isso é bossa nova/ isso é muito natural…”. Serviu de cartão de visitas para a internacionalização do movimento, ao ser gravada pelo saxofonista Stan Getz e o guitarrista Charlie Byrd, numa versão instrumental, num compacto que superou 1 milhão de cópias vendidas em 1962.
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Garota de Ipanema
(Tom Jobim e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: João Gilberto/ Astrud Gilberto/ Stan Getz

Composta por Tom e Vinícius, foi inspirada numa jovem de 19 anos chamada Heloísa Pinheiro, que costumava ir à praia passando em frente ao Veloso, um bar onde a dupla batia ponto. Apresentada num show em agosto de 1962 — o primeiro a juntar a santíssima trindade num palco — ganhou sua gravação definitiva em dezembro, nos Estados Unidos, com João cantando em português e sua mulher Astrud Gilberto em inglês. Regravada em diversos países, tornou-se a segunda música mais executada no mundo, atrás apenas de “Yesterday“, dos Beatles.
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O Barquinho
(Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli)
Principal intérprete: Nara Leão
A canção traduziu como nenhuma outra o espírito da bossa nova: música jovem feita por gente jovem, num cenário calmo e festivo, de luz, mar e sol. Conta-se que seus autores, praticantes de pesca submarina em Cabo Frio (RJ), ficaram à deriva num barco com defeito, durante uma de suas pescarias, e compuseram a canção ali mesmo, dedilhando o violão enquanto esperavam para ser rebocados.
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Meditação
(Tom Jobim e Newton Mendonça)
Principal intérprete: João Gilberto
A canção foi lançada em 1960, no terceiro álbum de João Gilberto, que tinha como título justamente seu verso mais emblemático: O amor, o sorriso e a flor. A trinca virou uma espécie de síntese do movimento. Para o bem ou para o mal, convencionou-se dizer que a bossa nova era isto, uma moçada bronzeada e bem nascida dedicada a cantar o amor, o sorriso e a flor. Com o tempo, esse traço foi interpretado como alienação, uma falta de sensibilidade para os problemas do mundo.
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Bossa Nova Engajada

Com a renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, em 1961, o país passou a conviver com notícias periódicas de que o novo presidente implementaria um plano de governo cheio de medidas populares e evidente tendência à polarização. Reforma agrária, reforma educacional e nacionalização de empresas privadas que atuassem em setores estratégicos eram alguns de seus pilares. Esses temas, bem como a presença de intensas ondas migratórias do Nordeste para o Sudeste, o inchaço das favelas, a situação do morador de morro, entre outros, passaram a inspirar os artistas mais sensíveis às causas sociais.

O polo criador em que essa posição ideológica era mais explícita era o Centro Popular de Cultura da UNE, criado em 1961 por gente da música, do teatro e do cinema: Carlos Lyra, Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirszman e Carlos Estevam, que logo atraíram para o grupo Edu Lobo, Nara Leão, Ruy Guerra, Sérgio Ricardo e Geraldo Vandré.

Letras de cunho social começaram a se disseminar, normalmente embaladas em harmonias que flertavam com a música folclórica e as manifestações populares. Já em 1960, Lyra havia escrito a trilha sonora de uma peça de Vianinha com o sugestivo título de A Mais Valia Vai Acabar, Seu Edgard, na qual incluiu sua “Canção do Subdesenvolvido”.

Foi por meio do CPC que Sérgio Ricardo e Ruy Guerra emplacaram os primeiros filmes, como Esse Mundo É Meu, e Edu Lobo fez as primeiras trilhas para teatro, em especial as canções compostas com Ruy Guerra (“Reza”, “Aleluia”) e Gianfrancesco Guarnieri (“Upa Neguinho”, “Eu Vivo Num Tempo de Guerra”), presentes em espetáculos dirigidos por Augusto Boal, como Arena Conta Zumbi, de 1965, que lançou a semente do Teatro do Oprimido.

O produto mais notável desse período, também dirigido por Augusto Boal, no Teatro de Arena do Rio, foi o Show Opinião. Nele, a musa da bossa nova, Nara Leão, subiu ao palco acompanhada pelo sambista carioca Zé Keti, autor da música “Opinião”, e pelo sanfoneiro nordestino João do Vale, autor de “Carcará”. O encontro foi tocante: a burguesia letrada, lado a lado com a autêntica cultura nacional, indicavam o caminho para a música cada vez mais engajada que seria feita a seguir, na segunda metade dos anos 1960 e no início dos anos 1970, períodos caracterizados pela hegemonia da Era dos Festivais e das canções de protesto.

No mesmo ano de 1965, a revelação de Elis Regina no 1º Festival da TV Excelsior, cantando “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, transformou a cantora gaúcha de vinte anos no maior fenômeno da música brasileira. Dois dias após sua consagração na final do festival, Elis subia no palco do Teatro Paramount para apresentar por três noites consecutivas o show Dois na Bossa, ao lado de um crooner de boate, que fazia relativo sucesso com a música “Deixe que Digam”: Jair Rodrigues. Confirmando o talento da cantora, uma das três noites foi registrada no álbum homônimo, que bateu a marca de 1 milhão de cópias vendidas.

Uma semana após o festival da Excelsior, o país só queria saber de Elis Regina. Os diretores da emissora, no entanto, se recusaram a contratá-la, afirmando que não teriam onde aproveitá-la. Coube à concorrente Record fazer o que precisava ser feito: criou para ela um programa, O Fino da Bossa, no qual repetiria a dupla com Jair Rodrigues. Ali como no show, apresentavam um repertório fortemente inspirado na bossa nova tradicional e na bossa nova engajada, incluindo sambas de morro emprestados do Show Opinião, três canções de Edu Lobo, outras duas de Carlos Lyra, duas de Sérgio Ricardo. Elis, dona do maior salário da TV, alçava a bossa engajada a uma audiência inédita.

Influência do Jazz
(Carlos Lyra)
Principal intérprete: Carlos Lyra

Um dos pioneiros da bossa nova, com três canções gravadas no primeiro álbum de João Gilberto, Carlos Lyra foi um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da UNE. Foi também o principal articulador da guinada social impressa ao movimento no início da década, em consonância com as políticas populares propostas por João Goulart, que levariam ao golpe de 1964. Nessa canção, rompeu simbolicamente com a bossa nova, ao apontar os efeitos dela no samba tradicional, agora americanizado e, por extensão, desvirtuado. “Pobre samba meu/ foi se misturando, se modernizando, se perdeu…”.
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Marcha da Quarta-Feira de Cinzas
(Carlos Lyra e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: Toquinho e Vinícius

Gravada por Carlos Lyra um ano antes do golpe militar, a marcha-rancho se revelou profética: “Ninguém passa mais/ cantando feliz/ e nos corações/ saudades e cinzas/ foi o que restou/ (…) a tristeza que a gente vê/ qualquer dia vai se acabar/ todos vão sorrir/ voltou a esperança/ é o povo que dança/ contente da vida/ feliz a cantar.” Na década de 1970, voltou a ser gravada e executada nos shows de Toquinho e Vinícius, em sua versão mais famosa.
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Maria Moita
(Carlos Lyra e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: Thelma

Com a mudança de Tom Jobim para os Estados Unidos, no final de 1962, Vinícius de Moraes engatou uma fértil parceria com Carlos Lyra. Ao longo de 1963, compuseram as canções da peça Pobre Menina Rica, de autoria do próprio Vinícius, lançadas em vinil no ano seguinte. “Maria Moita” é uma das músicas mais politizadas da peça, toda ela ambientada num acampamento de mendigos. “Nasci lá na Bahia/ de mucama com feitor/ o meu pai dormia em cama/ minha mãe no pisador/ (…) o homem acaba de chegar, tá com fome/ a mulher tem que olhar pelo homem/ e é deitada ou em pé/ mulher tem é que trabalhar.”
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Opinião
(Zé Keti)
Principal intérprete: Nara Leão

O samba do carioca Zé Keti foi muito marcante para a tomada de consciência política que marcou a cultura popular brasileira em 1964. Tanto que acabou emprestando seu nome não apenas ao famoso espetáculo criado por Augusto Boal no Teatro de Arena do Rio de Janeiro, mas também ao segundo disco de Nara Leão, musa do show e da bossa nova politizada, e ainda a um jornal alternativo. A letra vestia como uma luva o clima sombrio que envolvia os porões da ditadura ao longo da década: “Podem me prender/ podem me bater/ podem até deixar-me sem comer/ que eu não mudo de opinião”.
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Fica Mal Com Deus
(Geraldo Vandré)
Principal intérprete: Geraldo Vandré

A primeira música feita apenas por Geraldo Vandré, que até então era somente letrista, foi gravada num compacto de 1963 e incluída posteriormente em seu primeiro disco, no ano seguinte. Primeiro grande sucesso desse compositor paraibano radicado no Rio de Janeiro e ligado ao CPC da UNE, a canção tem uma mensagem tão clara quanto seus versos: “Fica mal com Deus/ quem não sabe dar/ fica mal comigo/ que não sabe amar.” Em 1966, foi gravada por Jair Rodrigues no lado B de Disparada.
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Esse Mundo é Meu
(Sérgio Ricardo e Ruy Guerra)
Principal intérprete: Elis Regina e Jair Rodrigues

Tema do filme homônimo de 1964, dirigido por Sérgio Ricardo e montado por Ruy Guerra, seus compositores, a canção seria incluída no famoso pout-pourri do morro entoado por Elis Regina e Jair Rodrigues no show Dois na Bossa, em abril de 1965. O filme narra a tomada de consciência social por dois jovens. Pedro trabalha numa serralheria e não pode se casar enquanto não recebe aumento. Toninho é engraxate e junta dinheiro para comprar uma bicicleta. “Fui escravo no reino e sou/ escravo no mundo em que estou/ mas acorrentado ninguém pode amar”.
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Arrastão
(Edu Lobo e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: Elis Regina

Inspirada nas experiências de Vinícius com os afro-sambas e em parcerias anteriores do jovem Edu Lobo com o cineasta Ruy Guerra, como “Reza” e “Aleluia”, essa canção de pescador com harmonia sofisticada, envolta num arranjo que em muito lembrava a alternância das marés entre calmarias e ressacas, venceu o 1º Festival da TV Excelsior, em1965, defendida por Elis Regina.
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Canto de Ossanha
(Baden Powell e Vinícius de Moraes)
Principal intérprete: Baden/ Vinícius/ Quarteto em Cy

Faixa de abertura do disco Os Afro-sambas, de Baden Powell e Vinícius de Moraes, foi lançada em 1966 com vocais do Quarteto em Cy e segunda voz da atriz Betty Faria. Fruto de um trabalho de pesquisa dos compositores (Baden em viagem à Bahia; Vinícius por meio de gravações de pontos de candomblé a que teve acesso), o disco mistura samba de roda e bossa nova, violão com instrumentos afro-brasileiros como os afoxés e os atabaques. “Canto de Ossanha” seria gravada por Elis Regina e, na década de 1990, por Paulo Belinatti e Mônica Salmaso, que reeditaram o álbum.
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Jovem Guarda

Enquanto os bossa novistas se politizavam e flertavam com a temática social, no hemisfério diametralmente oposto a jovem guarda canalizava os anseios da moçada mais antenada com o que vinha de fora, ansiosa por uma música moderna, leve e dançante, como os Beatles sabiam fazer tão bem. Estudar a jovem guarda é se debruçar sobre uma produção cultural voltada mais para o entretenimento e o mercado do que para o nacionalismo ou o engajamento político. Polos opostos no panorama de consumo musical, especialmente dos jovens, nos primeiros anos de regime militar.

Com a consagração do programa O Fino da Bossa, conduzido por Elis Regina e Jair Rodrigues na TV Record, não tinha gravadora que não sonhasse em emplacar seu casting de estrelas na televisão. A disputa, naquele momento, era sobretudo por audiência.

Enquanto os artistas alinhados à bossa nova, politizada ou não, faziam lobby para subir no palco do Fino, aqueles que tocavam outros tipos de música se punham a tramar estratégias de ocupação da grade horária com programas similares. O mais notório subproduto do Fino, concebido para atrair outro filão, foi o Jovem Guarda, apresentado nas tardes de domingo na mesma TV Record.

A polarização era evidente. De um lado, os jovens engajados, comprometidos com a cultura nacional, ligados ao que havia de mais moderno na música brasileira. Isso, é claro, sem abdicar da herança do samba tradicional e da primeira fase da bossa nova, envolvida também com o CPC e a vanguarda do teatro (Arena, Oficina, Opinião) e do cinema (o Cinema Novo de Ruy Guerra e Glauber Rocha).

Do outro lado, a moçada que admirava Elvis Presley, Chuck Berry e Little Richard, entusiasmada com o surgimento dos Beatles e a animação de seus álbuns. Já em 1963, quando o mundo inteiro cantava “She Loves You”, o yeah-yeah-yeah presente no refrão foi traduzido para iê-iê-iê no Brasil e passou a designar o tipo de rock feito pelos Beatles.

Em 1964, o primeiro filme estrelado pelos Beatles estreou na Inglaterra com o título de A Hard Day’s Night e, no Brasil, como Os Reis do Iê-iê-iê. Consolidada a beatlemania, crescia a turma embevecida com os hits importados. “My Girl”, dos Beatles, virou “Meu Bem”, na voz do “príncipe” Ronnie Von. “All my Loving”, também dos Beatles, virou “Feche os Olhos”, com Renato e Seus Blue Caps.

O programa Jovem Guarda foi concebido por uma agência de propaganda, justamente para atrair essa turma. Na prática, os objetivos principais do programa eram substituir os jogos de futebol, cuja transmissão acabara de ser proibida, e disputar anunciantes com outro programa, o Festival da Juventude, apresentado também nas tardes de domingo, na TV Excelsior.

Para isso, a Record repetiu o modelo adotado no Fino: o palco era comandado por astros da música, e não meros apresentadores, e a eles se somavam outros artistas. O trio de ouro do iê-iê-iê cumpria o papel de anfitrião: o “rei” Roberto Carlos, o “tremendão” Erasmo Carlos, e a “ternurinha” Wanderléa. O rei repetia a torto e a direito o bordão “é uma brasa, mora”, transformado numa das gírias mais marcantes dos anos 1960.

O título do programa, inspirado na expressão velha guarda, foi logo adotado pelas rádios e gravadoras para se referir ao ritmo praticado pelos artistas que batiam ponto em seu palco: Ronnie Von, Jerry Adriani, Os Vips, Eduardo Araújo, Renato e Seus Blue Caps, Os Incríveis, Martinha, Wanderley Cardoso, Golden Boys e outros. Nascia, assim, o movimento da jovem guarda.

Um movimento teve muita força até 1967, quando seus artistas já não podiam resistir à fama de alienados ou americanizados, mas manteve alguma dignidade até o fim do programa, em 1968. Em janeiro daquele ano, a audiência do Programa Sílvio Santos, então exibido pela Rede Globo, superou pela primeira vez o público do Jovem Guarda, e Roberto Carlos optou por abandonar o barco. Erasmo e Wanderléa assumiram o leme por mais algumas semanas, mas o fim era eminente.

Em razão do sucesso dos artistas da jovem guarda, uma nova polarização despontou: entre os que concebiam o uso da guitarra elétrica e os que a consideravam um instrumento “alienígena”. Essa oposição continuaria presente até o final da década, com a guitarra sendo apoiada pelos tropicalistas e rejeitada pelos praticantes da música de protesto, arrancando vaias e aplausos nos festivais.

Estúpido Cupido
(Howard Greenfiel e Neil Sedaka, versão de Fred Jorge)
Principal intérprete: Celly Campello

A versão em português de “Stupid Cupid”, sucesso de Connie Francis em 1958, foi gravada por Celly Campello, em 1959. A música rendeu a ela o título de precursora do rock brasileiro e de uma das musas da jovem guarda, após a consagração do movimento. Foi sondada para apresentar o programa da Record ao lado de Roberto e Erasmo, mas decidira interromper a carreira ao se casar, aos 20 anos, em 1962. Mesmo assim, essa e outras músicas de seu repertório, como “Banho de Lua” e “Lacinhos Cor-de-Rosa”, seguiram associadas ao movimento.
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Splish Splash
(Bobby Darin e Murray Kaufman, versão de Erasmo Carlos)
Principal intérprete: Roberto Carlos

Faixa título do LP lançado por Roberto em 1963, em que o cantor assume definitivamente sua porção roqueira (no álbum anterior, de 1961, prevalecia a influência da bossa nova e da música romântica). “Splish Splash” é uma versão em português, feita por Erasmo Carlos, para um hit americano homônimo, do repertório de Bobby Darin, de 1958. Nela, estão sintetizados a harmonia simples e o ritmo dançante do rock predominante naquele período, bem como a letra ingênua focada no cotidiano da juventude, como o beijo roubado no escurinho do cinema.
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Quero que Vá Tudo pro Inferno
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
Principal intérprete: Roberto Carlos

Foi lançada no programa Jovem Guarda, no final de 1965, e logo se tornou sua assinatura: quase sempre, o encerramento era feito com todos os convidados cantando juntos o maior sucesso de Roberto e Erasmo. Faixa de abertura do LP Jovem Guarda, de Roberto, também de 1965, foi responsável por transformar o cantor num fenômeno pop nacional.
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Festa de Arromba
(Roberto Carlos e Erasmo Carlos)
Principal intérprete: Erasmo Carlos

Lançada em 1965, num compacto simples de Erasmo Carlos. A música fez tanto sucesso que chegou a ser cogitada como título da versão carioca do programa Jovem Guarda, exibido ao vivo pela TV Rio, nas noites de segunda-feira. Entre gírias e interjeições (“hey, hey/ que onda/ que festa de arromba”), a letra presta homenagem aos principais nomes do movimento: “Renato e seus Blue Caps/ tocavam na piscina/ The Clevers no terraço/ Jet Black’s no salão/ Os Bells de cabeleira/ não podiam tocar/ enquanto a Rosemary/ não parasse de dançar…”.
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Pare o Casamento
(Fred Johnson, Leroy Kirkland e Pearl Woods, versão de Luís Keller)
Principal intérprete: Wanderléa

O maior sucesso da Ternurinha foi esta versão em português para um hit de Etta James, lançado originalmente pela cantora americana em 1963, incluída no LP A Ternura de Wanderléa, de 1966. “Senhor juiz, pare agora”.
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Rua Augusta
(Hervê Cordovil)
Principal intérprete: Ronnie Cord

Hervê Cordovil era maestro e arranjador da rádio e da TV Record quando compôs “Rua Augusta” para ser gravada, em 1964, por seu filho Ronnie Cord, um dos ícones do iê-iê-iê pré-jovem guarda. Antes disso, ele havia sido parceiro de Noel Rosa num samba dos anos 1930 e autor de canções gravadas por diversos artistas, em diferentes gêneros musicais. Sua inspiração para esta canção foi a rua mais jovem, moderna e cosmopolita de São Paulo, onde ficava a boate Lancaster, templo do twist, e onde a garotada fazia racha na madrugada. Cena esta eternizada na letra: “Desci a Rua Augusta a 120 por hora…”.
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Música de protesto

À medida que o regime se fechava, cada vez mais autoritário e violento, parte importante do grupo que produzia bossa nova engajada acabaria por inaugurar uma nova escola no cancioneiro geral: a da música de protesto. Esse filão, tão prolixo quanto necessário em tempos de censura e truculência, não chegou a constituir um ritmo ou um gênero musical, como a bossa nova e o iê-iê-iê.

Musicalmente, conciliava-se com ritmos já constituídos, localizados em diferentes bases, como o samba, a toada ou a marchinha. O fundamental era transmitir o recado. A música de protesto constituiu o primeiro movimento musical mais facilmente identificável pelas letras do que pelas harmonias. O que servia de espinha dorsal do movimento, ao redor da qual se acomodavam os artistas, era a oposição ao regime militar e aos seus desmandos.

Contribuíram para esse florescer de canções engajadas os sucessivos festivais da música popular promovidos primeiramente pela TV Excelsior e, em seguida, pela Record, em São Paulo, e pela Globo, no Rio. Foi nos festivais da música popular brasileira que muitas das canções de protesto foram exibidas pela primeira vez e alcançaram fama internacional.

Com a censura oficial imposta pelos militares, as gravadoras passaram a submeter à análise as partituras e as letras das composições previstas para os álbuns em produção. O passo seguinte foi exigir também o envio de fitas gravadas, uma vez que virou moda driblar a censura com jogos de palavras só perceptíveis em voz alta, conforme a interpretação do cantor.

Um exemplo é “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil, uma das mais famosas canções de protesto. Criada e proibida em março de 1973, ela seria lançada em disco apenas em 1978. Nela, o pulo do gato era transformar a palavra “cálice” em “cale-se”, algo que a letra impressa poderia disfarçar, mas a audição tornava evidente.

Em geral, a mensagem morava nas entrelinhas, e podia ser mais ou menos explícita conforme a intenção ou a experiência do autor. Em “Acorda Amor”, por exemplo, o aparente relato da prisão de um ladrão de galinha esconde a real intenção do compositor: descrever o momento em que um subversivo era raptado por agentes do Dops. “Se eu demorar uns meses/ convém às vezes/ você sofrer/ mas depois de um ano eu não vindo/ põe a roupa de domingo/ e pode me esquecer.” Essa passou. Já “Apesar de Você”, que simulava uma briga de casal para eternizar um desabafo contra a ditadura, foi vetada: “Como vai proibir/ quando o galo insistir/ em cantar?”.

Outra estratégia era assinar com um pseudônimo, para evitar o pente fino reservado aos compositores mais visados (Chico virou Julinho de Adelaide, o MPB 4 virou Coral Som Livre). Ou inserir as músicas com duplo sentido no meio do material encaminhado pela gravadora para ser usado nos discos de artistas bregas, românticos, alienados, que jamais deram motivo para preocupação. Nesses casos, era mais provável que o censor, inocente, fizesse vista grossa.

Foi cumprindo à risca essa estratégia, por exemplo, que Paulo César Pinheiro teve liberada “Pesadelo”, a mais descarada de todas as canções de protesto dos anos 1970, lançada em seguida pelo MPB 4: “Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto/ de repente, olha eu de novo/ perturbando a paz, exigindo troco…”.

Além de Chico, Gil, Paulo César Pinheiro e os cantores do MPB 4, foram também assíduos praticantes da música de protesto artistas como Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Gonzaguinha, Ivan Lins e Vítor Martins, Taiguara, João Bosco e Aldir Blanc, Milton Nascimento e Caetano Veloso, entre outros.

Viola Enluarada
(Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
Principal intérprete: Milton Nascimento e Marcos Valle

“A mão que toca um violão/ se for preciso faz a guerra”. Era essa a mensagem. Artistas do mundo, uni-vos! Gravada em janeiro de 1968, o ano que assistiria à radicalização da resistência e também da repressão. Principalmente após a morte do estudante Edson Luís, no Rio de Janeiro, a prisão de centenas de universitários no congresso da UNE, em Ibiúna, e a promulgação do AI-5, em dezembro. Essa toada sertaneja tornou-se uma das mais lembradas canções de protesto do final da década, sendo entoada inclusive pelos combatentes do Araguaia.
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Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores
(Geraldo Vandré)
Principal intérprete: Geraldo Vandré

Assim que foi anunciado o veredicto do júri do Festival Internacional da Canção de 1968, no Rio de Janeiro, o público que lotava o Maracanãzinho se pôs a vaiar a vencedora, “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. A maior parte da plateia torcia pela vitória desta que é considerada a mais emblemática canção de protesto lançada durante a ditadura militar, com seu irrepreensível refrão: “Vem, vamos embora/ que esperar não é saber/ quem sabe faz a hora/ não espera acontecer”.
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Proibido Proibir
(Caetano Veloso)
Principal intérprete: Caetano Veloso

Uma frase grafitada num muro de Paris no Maio de 1968 e captada por uma foto publicada no Brasil pela revista Manchete inspirou a canção de Caetano Veloso: Il est interdit d’interdite. O baiano a terminou às vésperas de inscrevê-la no Festival Internacional da Canção, realizado em setembro, e foi vaiado por subir ao palco acompanhado com os roqueiros de Os Mutantes, num ano em que parte considerável da plateia se opunha ao uso de guitarras. As vaias foram rebatidas por um discurso inflamado do artista, num episódio épico dos anos de chumbo.
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Cálice
(Gilberto Gil e Chico Buarque)
Principal intérprete: Chico Buarque e Milton Nascimento

Composta num sábado de Aleluia, especialmente para ser apresentada em dueto no festival Phono 73, produzido pela gravadora Phonogram, a canção abusou do jogo de palavras “cálice”/ “cale-se” e acabou vetada pela censura na véspera do show. A autorreferência foi inevitável: calaram os cantores no exato momento em que eles ousavam gritar “cale-se” ao microfone. “Esse silêncio todo me atordoa/ e atordoado eu permaneço atento.” Os artistas só conseguiram mostrar uma versão instrumental, e Chico só pôde gravá-la cinco anos depois, em 1978, dividindo os vocais com Milton Nascimento, uma vez que o parceiro original deixara a gravadora.
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Apesar de Você
(Chico Buaque)
Principal intérprete: Chico Buarque

No primeiro verso, a canção já mostrava a que vinha: “Amanhã vai ser outro dia”, repetia o cantor, com a voz cada vez mais nítida, uma, duas, três vezes. “Hoje, você é quem manda/ falou, tá falado/ não tem discussão”, afirmava ainda a primeira estrofe. De cabo a rabo, a canção registrada num compacto no final de 1970 se referia à censura e à repressão policial. Em 1971, Chico foi convocado para dar explicações. Os agentes queriam saber quem era o “você” da canção. “Uma mulher muito autoritária”, jurava Chico. Não colou. E a música foi proibida, até 1978.
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Acorda Amor
(Leonel Paiva e Julinho de Adelaide)
Principal intérprete: Chico Buarque

Julinho de Adelaide, o autor da letra, nunca existiu. Seu nome verdadeiro era Francisco Buarque de Hollanda. Em 1974, Chico precisou recorrer a um codinome para ter uma canção liberada pela censura. Sem esse expediente, nada dele passaria. Um dos mais visados autores de canções de protesto, ao lado de Taiguara e Gonzaguinha, Chico foi bem sucedido em sua estratégia e conseguiu gravar o samba de Julinho de Adelaide. Nele, descrevia uma cena muito frequente naqueles anos: o momento em que um agente da ditadura invade a casa de um cidadão acusado de subversão e o leva preso. O jeito era se despedir da mulher, com a ansiedade natural de quem não sabe se seu destino será a cela, o exílio ou a morte sob tortura. “Se eu demorar uns meses/ convém às vezes/ você sofrer/ mas depois de um ano eu não vindo/ põe a roupa de domingo/ e pode me esquecer.”
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Comportamento Geral
(Gonzaguinha)
Principal intérprete: Gonzaguinha

Lançada num compacto de 1973, a canção foi responsável por colocar Gonzaguinha em evidência. Bastou “Comportamento Geral” fazer algum sucesso nas rádios para que ele fosse convidado a participar do programa de Flavio Cavalcanti, justamente no quadro Um Instante Maestro, em que o apresentador costumava quebrar os discos mal avaliados pelos jurados. Não deu outra. No ar, o cantor foi chamado de terrorista e ameaçado de deportação. Dias depois, a exibição da música estava proibida, embora continuasse autorizada a entrar em seu primeiro LP, gravado naquele ano. “Deve pois só fazer pelo bem da Nação/ tudo aquilo que for ordenado/ pra ganhar um Fuscão no juízo final/ e diploma de bem comportado”, diz um trecho.
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Hoje
(Taiguara)
Principal intérprete: Taiguara

Numa ocasião, ao submeter à censura as 14 faixas que planejava gravar em seu LP seguinte, Taiguara teve 11 delas vetadas. Acostumado a ir ao gabinete do censor para discutir alterações nas letras, chegou a trocar a palavra polícia, em português, por “police”, em inglês, numa canção, porque seria autorizado a gravar se a traduzisse. “Hoje” foi uma de suas 68 músicas censuradas: ” Hoje/ trago em meu corpo as marcas do meu tempo/ meu desespero, a vida num momento/ (…) Hoje/ homens sem medo aportam no futuro/ (…) Eu não queria a juventude assim perdida/ eu não queria andar morrendo pela vida…”
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Pesadelo
(Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro)
Principal intérprete: MPB 4

Para conseguir a liberação da música, Paulo César Pinheiro recorreu a uma estratégia auspiciosa. Funcionário da gravadora Odeon, incluiu a música no material atribuído a Agnaldo Timóteo, torcendo para que passasse despercebida pelos censores. Afinal, Timóteo era um cantor acima de qualquer suspeita, que jamais gravaria uma música subversiva. Acertou. Quando foi mostrar ao pessoal do MPB 4, já com o carimbo de autorizada, ninguém acreditou que ela tivesse passado. Sua letra é, provavelmente, a que faz a oposição mais explícita à censura e à violência dos militares: “Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto…”
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O Bêbado e a Equilibrista
(João Bosco e Aldir Blanc)
Principal intérprete: Elis Regina

Gravada por Elis Regina em 1979, virou o hino da luta pela aprovação da lei da anistia. Sua letra descrevia um país “que sonha/ com a volta do irmão do Henfil/ com tanta gente que partiu/ num rabo de foguete”. Em seguida, reverenciava Clarisse Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura no DOI-Codi: “Chora/ a nossa pátria, mãe gentil/ choram Marias e Clarices/ no solo do Brasil”. No dia em que o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, também conhecido como “o irmão do Henfil”, aterrissou no Brasil na volta do exílio, uma multidão o recebeu com toca-fitas nas mãos, reproduzindo a canção no saguão do aeroporto.
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Tropicalismo

“Eu organizo o movimento”, diz um verso de “Tropicália”, a canção-manifesto de Caetano Veloso, que deu nome a um dos movimentos mais férteis e efervescentes dos anos 1960. O autor não mentiu. Caetano foi de fato quem mais contribuiu para fixar as bases do tropicalismo, em 1967, firmando-se como seu maior mentor, compositor e divulgador.

Foi também no contexto dos festivais que se plantou a semente da Tropicália, exatamente quando as canções de protesto começavam a dar sinais de sectarismo e caretice, repetindo fórmulas musicais e poéticas. Embora o movimento tenha sido enunciado em 1968, com o lançamento do álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, sua origem remonta ao Festival da Record do ano anterior, quando Caetano e Gilberto Gil apresentaram duas canções identificadas com as propostas éticas e estéticas do grupo: “Alegria, Alegria”, de Caetano, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil.

Nelas, surgiam alguns elementos formadores do tropicalismo, como a preferência por letras descritivas e cinematográficas, o uso de guitarras elétricas em conjunção com instrumentos afro-brasileiros (coisa que os nacionalistas consideravam acintosa), e versos que citavam produtos industriais e ícones da cultura de massa, como em “eu tomo uma coca-cola”.

Sua consagração veio no ano seguinte, o interminável ano de 1968, quando as notícias que desembarcavam de Paris sugeriam novas formas de engajamento, uma nova atitude diante da revolução. A pauta da liberdade política somava-se agora a outras pautas, essencialmente comportamentais, nas quais o conceito de liberdade extrapolava os contornos dos direitos civis para alcançar os direitos individuais. Liberdade sexual, liberdade de escolhas, liberdade para usar drogas ou meter uma guitarra distorcida no meio de um samba, tudo isso começou a virar do avesso a estética gasta que predominava nas canções de protesto.

Além de Gil e Caetano, o movimento teve entre seus principais articuladores os também compositores Tom Zé, Capinan e Torquato Neto, as cantoras Gal Costa e Nara Leão, o grupo de rock Os Mutantes e os maestros Júlio Medaglia e Rogério Duprat. Os dois últimos foram de fundamental importância para o sucesso da empreitada, uma vez que os arranjos concebidos para as principais gravações, desde “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, ajudaram a compor o DNA da nova sonoridade. Até Nara Leão, ex-musa da bossa nova e do Show Opinião, se aproximou dos tropicalistas, cantando no álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968.

Esse disco transbordava de novidades. Os músicos, em sua maioria baianos, faziam exatamente o que não podia ser feito. Ao menos segundo os cânones da música de protesto, tão em voga naquele período de patrulha generalizada. Para melhor explicitar o objetivo de incorporar tudo o que era considerado alienígena ou de mau gosto, homenageavam a música cafona de Vicente Celestino, de quem Caetano regravou “Coração Materno”. Reverenciavam o iê-iê-iê alienado de Roberto Carlos, citado em “Baby”. Contaminavam o batuque de “Bat Macumba” com rifes de guitarra distorcida. Abusavam de estrangeirismos (“I love you”, em “Baby”, “made in Brazil”, em “Geleia Geral”) e recomendavam a todos que aprendessem inglês. Falavam de margarina, louvavam o Senhor do Bonfim. E ainda ousavam criticar o regime em rápidas incursões pelo universo bélico, como na presença do policial que tudo observa em “Lindonéia” ou no disfarçado tripé brasil-fusil-canhão, soletrado à moda baiana em “Miserere Nobis“: “be-re-a-bra,ze-i-le-zil/ fe-u-fu,ze-i-le-zil/ ce-a-ca, nê-agá-ao-til-nhão/ ora pro nobis/ ora pro nobis”.

“Afinal, ele é nosso avô”, chegou a declarar Tom Zé para justificar por que achava que Chico Buarque, oito anos mais novo do que ele, deveria ser respeitado. Isso porque Chico preferia compor sambas e marchinhas, estilos musicais fundados na tradição, enquanto os tropicalistas difundiam o projeto de modernizar a música brasileira, a partir da apropriação de elementos externos, instrumentos elétricos e temas representativos da sociedade de consumo. “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, escreveu Chico Buarque, num artigo de jornal, para rebater a patrulha de Tom Zé, ainda em 1968.

Como numa fábula, o feitiço se disseminara rapidamente pela música brasileira entre 1967 e 1968, ano em que Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes lançaram discos altamente influenciados pelas teses do movimento (o LP de Gal sairia no comecinho do ano seguinte). A influência do tropicalismo chegou às artes e à moda, contribuindo para disseminar no país os cabelos compridos, os adereços hippies, os princípios do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e o conceito recente de contracultura. Todo esse pessoal, no final de 1968, reuniu-se no palco do programa Divino Maravilhoso, criado pela TV Tupi na esteira da onda tropicalista.

Mas o movimento praticamente desapareceu em 1969. A prisão de Caetano e Gil às vésperas do Natal de 1968, dez dias depois do AI-5, e seu exílio em Londres por dois anos contribuíram para sufocar o grito libertário daquela turma, embora suas influências se estendam a toda a obra posterior desses artistas.

Sem deixar de dialogar com os dilemas do Brasil e da identidade nacional, os tropicalistas abriram a música nacional, tanto filosófica quanto geograficamente, deixando-se envolver em lufadas de rock. O movimento legitimou as raízes do que viria a ser o rock brasileiro, inaugurado ainda nos anos 1960 com Os Mutantes, e consolidado a partir da década seguinte, primeiro com Raul Seixas e Secos & Molhados, desde 1973, e, em seguida, com bandas atuantes no período da abertura e das Diretas, como a Blitz e o Ultraje a Rigor.

Alegria, Alegria
(Caetano Veloso)
Principal intérprete: Caetano Veloso

Caetano Veloso foi buscar no bordão do showman Wilson Simonal, o rei da pilantragem, o título da canção que deflagrou a Tropicália. Ao mostrá-la no Festival da Record de 1967, o baiano chocou o público com o ineditismo de um arranjo repleto de guitarras, e uma letra que falava em coca-cola ao mesmo tempo em que servia de manifesto paz e amor com seus desencanados versos iniciais: “Caminhando contra o vento/ sem lenço sem documento/ num sol de quase dezembro…”.
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Domingo no Parque
(Gilberto Gil)
Principal intérprete: Gilberto Gil

Tal qual “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, “Domingo no Parque” surgiu no Festival da Record de 1967 para confundir. Com uma cadência calcada no toque de um berimbau, como um ponto de capoeira, a harmonia da canção se servia das guitarras d’Os Mutantes para combinar tradição e modernidade, regionalismo e cosmopolitismo. Tudo isso numa letra longa e fragmentada que parecia converter num vertiginoso roteiro de cinema uma sinopse emprestada de uma coluna policial de um jornal popular.
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Divino Maravilhoso
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Principal intérprete: Gal Costa

Gal Costa começou o ano de 1968 como a menina doce que cantava bossa nova, ganhando na Bahia o apelido de “João Gilberto de saias”, e terminou como a tresloucada garota de cabeleira desgrenhada que gritava “é preciso estar atento e forte”, alto o bastante para esconder as vaias que recebeu na final do 4º Festival da Record. As guitarras ainda incomodavam parte do público. Mesmo assim, “Divino Maravilhoso” ficou em terceiro lugar. Bastou para que a TV Tupi criasse a toque de caixa um programa com o mesmo nome, no qual Gal Costa, Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes recebiam convidados como Jorge Ben e outros. Graças à cantora, então mais conhecida como a intérprete de “Baby”, o tropicalismo chegava à televisão.
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Tropicália
(Caetano Veloso)
Principal intérprete: Caetano Veloso

A música-manifesto do movimento foi lançada num álbum solo de Caetano Veloso, em janeiro de 1968, e funcionou como uma espécie de trailer, ou teaser, do fenômeno que estava prestes a deflagrar. Como num preâmbulo, a canção apenas sugeria o que viria a ser o tropicalismo propriamente dito, conceituado e consolidado meses depois, no álbum coletivo homônimo (formado apenas por músicas inéditas, ele não inclui a canção “Tropicália”). Aqui, Caetano surge em clima de suspense, abrindo caminho em meio à mata tropical para seu bloco passar, não sem prestar a devida homenagem a tudo o que o precedia: “A Banda”, Carmen Miranda, O Fino da Bossa, “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, tudo isso já era passado.
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Baby
(Caetano Veloso)
Principal intérprete: Gal Costa

Sem dúvida o maior hit do álbum seminal do movimento, essa canção foi feita por Caetano para ser gravada por Maria Bethânia. Ela inclusive tinha dado algumas orientações, como a sugestão do título, e as menções a Roberto Carlos e a uma camiseta na qual fosse possível ler “I Love you”. Como a irmã de Caetano optou por ficar fora do movimento, mantendo a postura de artista independente que a caracterizou por toda a vida, o hit caiu no colo de Gal Costa.
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Geleia Geral
(Gilberto Gil e Torquato Neto)
Principal intérprete: Gilberto Gil

Embora o disco de 1968 traga no título os nomes de duas outras canções, “Tropicália” e “Panis et Circensis”, é Geleia Geral a canção que, para alguns especialistas, melhor exprime a ética do movimento. As múltiplas referências, vindas de tudo que é lado, estão ali: o regionalismo do bumba-meu-boi, o LP de Sinatra, a influência modernista sintetizada na citação do verso “a alegria é a prova dos nove”, o formiplac e o céu de anil.
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Bat Macumba
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Principal intérprete: Gilberto Gil e Os Mutantes

A ousadia desta faixa, também incluída no disco coletivo de 1968, foi revestir com rock uma harmonia simples, estruturada sob a forma de um ponto de umbanda, com uma letra que se resume ao título: “Bat macumba, iê-iê / bat macumba, ôba”.
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